O escritório do jornalista é enfeitado com fotos em preto e branco de Grace Kelly, Jayne Mansfield e Marilyn Monroe. Mas estamos na sede do L´Osservatore Romano, no Vaticano, a dois passos da Porta de Santa Ana, ladeada por guardas suíços impecáveis em uniformes azuis e dourados. O L´Osservatore Romano [O Observador Romano] não é mais o jornal de alguns poucos monsenhores. Os redatores, cerca de 30, são leigos, casados ou solteiros, e a redação do jornal se parece com a de todos os outros jornais. Com algumas poucas exceções: ostenta fotos do papa e crucifixos, e há muito poucas mulheres. E todos os dias, ao meio-dia, os jornalistas se reúnem para a oração do Angelus. As más-línguas o chamam de ‘jornal do partido’ ou ‘o Pravda da igreja’. Mas Giovanni Maria Vian, seu diretor, não tem nada de comissário político. Ele possui a fineza de espírito dos intelectuais italianos de cultura enciclopédica; é dotado de temperamento liberal, mas de uma fidelidade absoluta à Igreja Católica.
‘Jornal mais sexy’
É capaz de dizer, soltando uma gargalhada, que é preciso tornar o L´Osservatore Romano ‘um pouco mais sexy’. Sem sacrificar aquilo que ele é: um dos jornais diários mais antigos do mundo, fundado em 1861, numa época em que a Santa Sé se apegava a seu poder temporal. Batalha perdida, pois dez anos mais tarde os patriotas italianos derrubaram o papa rei de Roma, que, até os acordos do Latran (1929), passaria a ser ‘prisioneiro’ da Cidade Eterna. Essa história e a de Giovanni Maria Vian – que, menino, brincava nos jardins do Vaticano – se superpõem. Pois o novo editor do L´Osservatore Romano não é nenhum noviço.
Antes dele, seu avô e seu pai já tinham sido colaboradores do ‘jornal do papa’. Agostino, seu avô, vindo da cidade dos doges como funcionário do novo Estado italiano, tinha como amigo Giuseppe Sarto, patriarca de Veneza, que o casou na véspera de partir para um conclave romano: aquele que elegeria o papa que ficou conhecido como Pio 10º (1903-14). Seu pai, Nello, também fazia parte do círculo interno do Vaticano: foi secretário da Biblioteca do Vaticano e amigo íntimo do monsenhor Giovanni Battista Montini, que batizou seu filho antes de tornar-se o papa Paulo 6º (1963-78). ‘A amizade de meu pai com o papa Montini existia, mas sem jamais se exibir’, comenta.
Em sua casa, a família orava também ‘sem ostentação’, fazia o sinal da cruz na hora das refeições e rezava o terço. Todos os dias, às 17h, o correio trazia o L´Osservatore Romano e o Corriere della Sera. Mas o jovem Vian, na época, preferia Júlio Verne ou Emilio Salgari (O Corsário Negro, Os Piratas da Malásia etc.). Na adolescência, ele devorava Alessandro Manzoni (1785-1873), católico convertido, escritor romântico louco por Napoleão. Vian está totalmente em casa nos corredores do palácio apostólico, cruzamento da política e das belas-artes, da Renascença e do mundo moderno, da terra e do céu.
Intelectual de direita
No primeiro piso, entra-se no gabinete do cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, número dois da Cúria (depois do papa); a sala é adornada com afrescos, poltronas adamascadas e troféus – esportivos, pois o cardeal é fanático por futebol. Vian e Bertone são amigos desde que colaboraram juntos no Instituto da Enciclopédia Italiana. Com a ajuda de uma webcam, eles dialogam com os cristãos de Kerala, na Índia, para tratar do lançamento da edição do L´Osservatore Romano na língua malayalam. Ela vai somar-se às edições espanhola, francesa (que circula em 130 países), inglesa, portuguesa, alemã e polonesa.
A vocação de jornalista não foi a primeira de Vian, que primeiramente estudou na Universidade La Sapienza – onde ainda leciona – a filologia nos textos dos fundadores da igreja, aos quais consagrou a parte principal de suas 80 obras. ‘Foi na filologia que descobri o rigor, a pesquisa sobre os documentos, a atenção aos textos escritos’, diz. Mas o jornalismo atiçava sua curiosidade. Em 1973 escreveu seu primeiro artigo no jornal católico L´Avvenire, sobre os manuscritos de Horácio. Depois, colaborou em jornais de direita como Il Foglio, fato que ainda lhe vale a reputação de ‘teocon’ (teólogo conservador), agravada por sua recusa em colaborar com o prestigioso Instituto de Ciências Religiosas de Bolonha, dirigido pelo historiador Giuseppe Alberigo, visto como demasiado esquerdista em sua interpretação do Concílio Vaticano 2º (1962-65).
Tudo isso lhe serviu como ótimo cartão de visita para o papa, que em 2007 recrutou esse intelectual brilhante, moderno, criado à sombra de são Pedro e dotado de ortodoxia incontestável. O trabalho que lhe foi encomendado foi claro: abrir o ‘L´Osservatore Romano’ para o mundo. Operar uma transformação num jornal esclerosado, enrijecido nos conflitos da política italiana. Esta, hoje, é uma rubrica marginal. ‘Menos importante que Mianmar, o Irã ou a Somália’, observa o vaticanista Sandro Magister.
Islã e China
[O presidente francês] Nicolas Sarkozy foi entrevistado por Jean-Michel Coulet, diretor da edição francesa, durante sua visita a Roma. O Oriente Médio, o islã e a China são temas de comentários regulares e alvos de atenção extrema. A cultura também conquistou espaço maior no jornal. Vian se distinguiu ao contratar para a direção desse serviço uma mulher, Silvia Guidi, e hoje já se encontram críticos de espetáculos artísticos no L´Osservatore Romano. Um concerto do roqueiro Bruce Springsteen chegou a receber uma crítica elogiosa.
A cobertura das religiões foi ampliada para abranger outras além da católica, e um dos motivos de orgulho do novo editor é o fato de contar com a colaboração de intelectuais agnósticos ou não católicos. É o caso da historiadora judia Anna Foa, de muçulmanos, de religiosos como o pastor protestante Jean-Arnold de Clermont, o metropolita Cirilo, de Moscou, ou ainda o irmão Alois, prior da comunidade de Taizé, que Vian frequenta há pelo menos 30 anos. ‘É possível criticar o papa no L´Osservatore Romano?’, indagou um jornalista americano. Vian ainda ri quando se recorda da pergunta: ‘Existe algum jornal do mundo que critica seu dono?’ A resposta é clara, portanto. O L´Osservatore Romano continua a ser o jornal oficial, que publica os textos do papa, suas nomeações.
Textos reescritos
Mas, se a consulta com a Cúria é permanente, o diretor do jornal não é obrigado a enviar os artigos para a aprovação dela antes de serem publicados. Alguns textos são adiados ou reescritos: ‘Não há ulemás. Mas não podemos correr o risco de sabotar os esforços da diplomacia do Vaticano, por exemplo’, explica o diretor.
O jornal reconquistou autoridade. Portando a data do dia seguinte, é aguardado todas as tardes, por volta das 17h, pelos correspondentes da imprensa internacional em Roma. Está mais arejado, de leitura mais agradável, publica mais fotos, entrevistas e colunas de opinião. ‘Nunca vamos competir com a televisão, a internet ou os jornais italianos. Mas nossa história é mais longa que a deles’, conclui Vian. Viúvo precoce, ele tem como consolo feliz a liberdade da qual diz desfrutar, as relações na universidade e a amizade dos irmãos, Paolo e Lorenzo.