Realidade: “Sabe, Andressa, seria constrangedor se um dia sentássemos para analisar profundamente o quanto a escola nos rasa. Seria de espanto se permitíssemos a nós mesmos um mergulho em nosso passado escolar para ver o quanto a escola nos emagreceu – e pior, nem suplantou uma ideia errada em nossas cabeças, para que, crescidos, pudéssemos nos armar, seja de poesia ou estilingue, para combatê-la. Até onde me lembro, na velha escola em que estudei mal havia ideias… Entre livros velhos, mal estudados e professores mal estudados, havia apenas o desejo do salário no fim do mês e a vontade gritante de silêncios redigidos… enquanto sonhava baixo as cadeiras de madeira, as crianças com fome e os quadros negros, nus…” (texto extraído do livro Memórias à beira de um estopim (2005), escrito por Lucas Rafael Nolli).
Sonho: “a) Democratizar o saber, que possibilita a apropriação e a transformação dos conhecimentos historicamente acumulados, como condição necessária à construção de uma escola sintonizada com seu tempo e comprometida com a sociedade em mudança; b) Fomentar a educação e o desenvolvimento integral do ser humano; o progresso do conhecimento científico e filosófico e a evolução socioeconômica da região em que está inserida; c) Formar profissionais e especialistas indispensáveis ao desenvolvimento científico, filosófico, sociocultural e econômico do país; d) Colaborar no esforço do desenvolvimento do país, articulando-se com os poderes públicos e com a iniciativa privada para o estudo de problemas em âmbito regional e nacional” (texto extraído do “Projeto Pedagógico de Curso” – Licenciatura em Letras, da Faculdade JK, no Distrito Federal.
Não é fácil lidar com este hiato gritante envolvendo a cultura educacional brasileira, porém alguns problemas podem ser resolvidos com o incentivo e a permissão da liberdade de se realizar um dos atos mais simples que nos é permitido: o ato de pensar. O que é, então, educação? Repetição e renovação de saberes, formação de seres humanos, preparação profissional, desenvolvimento de habilidades e competências, forma de libertar para refletir e agir? A educação está dentro de todas essas questões e de muitas outras mais porque ela envolve relações humanas de respeito, tradições culturais, mudança de valores, capacitação e formação moral e ética para proporcionar uma convivência social no campo do ensino e da aprendizagem. Alfredo Bosi, no artigo “Menos kits, melhores professores”, publicado na CartaCapital (edição 781, de 03/01/2014), vai à raiz do problema da educação doutrinária ainda vigente em nosso país, sugerindo possíveis vetores para uma “educação contraideológica”. Alerta o crítico e historiador da literatura brasileira: “Entupir a cabeça do aluno com dados, nomes, números e esquemas, o que significa em termos de formar uma pessoa justa, verdadeira, compassiva, democrática? A aspiração de Montaigne continua viva, mais do que nunca: a criança não deve ser um vaso que se encha, mas uma vela que se acenda.”
Apenas um tijolo no muro
Na prosa poética de Lucas Rafael Nolli, encontra-se presente o nobre anseio de que, conjuntamente, busquemos privilegiar propostas e atitudes educacionais que tenham a ver com uma cultura de resistência a tudo o que nos desqualifica enquanto seres humanos e cidadãos. Teoricamente, como vimos, existem projetos pedagógicos bem intencionados nesse sentido. O que falta, então, para o Verbo se tornar Carne? A gente se despedir urgentemente da “razão ornamental” que atrofia o nosso senso crítico. Conforme sublinha o filósofo Roberto Gomes, em Crítica da razão tupiniquim (1977): “A Razão Ornamental nos leva a abandonar tudo, esquecer aqui e fora daqui obras que importam, para correr atrás das últimas novidades. Nos conduz a querer aplicar aqui ‘escolas’ estrangeiras – portanto estranhas – como se isso fosse possível sem nos cobrar um preço: o esquecimento do que somos”. Ao confundirmos pensamento original com pensamento novidadeiro, ignoramos o fato de que original significa saber lidar com as origens. Faltando-nos originalidade verdadeira, agarramo-nos à novidade na ilusão de que nela se encontre a verdade.
Descentrados, jamais encontraremos o núcleo em torno do qual possamos dar coerência a nós mesmos, condição de originalidade. Somos ecléticos e positivistas, com celular na mão direita e tacape na esquerda. Nossa incapacidade de “ser gauche na vida” molda o nosso jeito Zelig de ser. Assim como Zelig, hilariante personagem do filme homônimo (1983) de Woody Allen, o homem cordial brasileiro, por meio de sucessivas operações de falseamento camaleônico, vai se transformando fisicamente diante dos outros, para ficar parecido com eles. Tudo pelo senso perpétuo de amortecimento de conflitos. Na contramão dessa razão ornamental, educar para formar o cidadão é propiciar a emergência de um espírito crítico que leve o pensamento à ação cívica. Caso contrário, a educação deixa de ser libertadora para se tornar opressora, cumprindo assim o papel de sistematizadora e mantenedora da dominação. Convém sempre se lembrar dos dizeres revolucionários presentes na canção Another Brick in the Wall (1979), composta por Roger Waters e cantada pela banda Pink Floyd: “We don’t need no education/We don’t need no thought control/No dark sarcasm in the classroom/Teachers leave them kids alone/Hey! Teachers leave them kids alone/Hey! Teachers! Leave them kids alone!/All in all it’s just another brick in the wall.” Não precisamos de nenhum controle de pensamento, nem de sarcasmo sombrio em sala de aula. Definitivamente, não somos apenas mais um tijolo no muro escolar!
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários