Soube em janeiro, pela internet, que a ONU e o Exército brasileiro ministrariam um ‘Curso de Preparação para Jornalistas em Área de Conflito’, uma espécie de ‘estágio’ para correspondentes de guerra que será, ainda, realizado no Rio de Janeiro, entre 10 e 14 de março. Interessei-me, logo me lembrei de que, pouco mais de dez anos antes, aproveitara a minha estada em Londres para negociar com a Bandeirantes – emissora de TV para a qual eu ‘frilava’ – uma aventura jornalística na Bósnia que, ao fim e ao cabo, não se consumou.
À luz da minha trajetória, a palavra ‘conflito’ me remete instantaneamente à cobertura de debates políticos (e à selvageria das campanhas eleitorais) ou às brigas do trânsito, dentro e fora dos carros, aos tiroteios nas favelas e, até mesmo, às perseguições policiais que testemunhei e relatei, como sobrevivente do ‘espírito das ruas’ de São Paulo.
Decidi me inscrever, certo de se tratar de uma atividade que transcenderia o aprimoramento do exercício profissional. Mais do que ‘habilitar’ para uma cobertura específica, o curso proporcionaria experiência e informação, a conjugação da teoria e da prática em face de situações-limite que desafiam a conservação de uma visão de mundo fundada na mesmice (ainda que seja uma mesmice suficientemente perturbadora, como a que já vivemos em São Paulo).
Bastava, agora, seguir as instruções do site do Centro de Instrução de Operações de Paz do Exército (CI Op Paz):
‘Os interessados em participar do curso deverão enviar um fax (61) 34155619 ao CCOMSEx [Centro de Comunicação Social do Exército], assinado por editor responsável do seu órgão de mídia e informando nome completo, data de nascimento, identidade e um telefone de contato (trabalho de preferência)’.
‘Seu órgão de imprensa não foi contemplado‘
Em 19 de janeiro, fui inscrito pelo editor-chefe deste Observatório, Luiz Egypto. Esperamos, desde então, uma manifestação dos organizadores do curso, um ‘sim’, um ‘não’, um ‘talvez’, um ‘o que fazer’, uma orientação qualquer.
No dia 25 do mês seguinte, resolvi ligar para o CCOMSEx para, enfim, descobrir: eu iria ou não para o Rio de Janeiro? Deve-se levar em conta a obviedade de que não se viaja por quase uma semana sem se programar com a necessária antecedência, sem prever e contornar determinadas implicações, pessoais, acadêmicas e profissionais.
A resposta, educada e atenciosa, foi esta: ‘Infelizmente, o seu órgão de imprensa não foi contemplado’. Explicou-se a dificuldade: ‘Eram apenas 20 vagas para 50 que se inscreveram’. ‘E quais foram os critérios’? Resposta:
1.
Prioridade para ‘veículo de alcance nacional’;2.
Experiência anterior. ‘Como assim, experiência anterior?’ – pergunto eu. ‘É a prioridade para quem já trabalhou com a gente’;3.
Distribuição eqüitativa entre as diversas mídias (para não dar ênfase em TV em detrimento do rádio, por exemplo).‘Faltou transparência ao processo seletivo’
Agradeci e desliguei, frustrado. Menos por não ter sido ‘contemplado’ do que pelas razões a seguir:
a
) Se não apenas pelos imperativos da civilidade ou pelas regras implícitas à boa convivência ou à boa educação, os organizadores do curso têm o que podemos classificar de dever institucional de avisar os participantes do resultado da seleção para a qual foram publicamente convocados. Inscrever-se é um ato de boa-fé. Receber um ‘não’ como resposta sempre será preferível a um silêncio altissonante, desses que apequenam pelo descaso com o cidadão;b)
Na peça de divulgação publicada pelo CI Op Paz não há, sequer, menção a uma seleção. Muito menos à quantidade diminuta de vagas. Menos, ainda, como já é de se esperar, a critérios de seleção. Não gosto de usar este termo surrado, mas vamos lá, pela clareza concedo-me a exceção: faltou transparência ao ‘processo seletivo’ que os inscritos tampouco sabiam que ocorreria;‘Prioridade é para quem trabalhou com a gente‘
c)
Dois dos critérios apresentados ao telefone e que, repito, conhecemos tarde demais, são absolutamente questionáveis. Comecemos por este: ao priorizarem o assim denominado ‘veículo de alcance nacional’, o Exército e a ONU não se dão ao trabalho de evitar o relevo do privilégio. É de se perguntar por que um veículo com maior poder econômico deve ser ‘contemplado’, em detrimento do menor. O argumento possível de que o primeiro é ‘mais representativo’, por se dirigir a um público maior, é democraticamente insustentável. Primeiro, porque o curso não se destina ‘ao público’, e, ainda que assim o fosse, fico a me indagar por que o público de um jornal mereceria tal concessão, em vez do público de um segundo ou de um terceiro veículo. Criamos, com isso, um público de primeira e um outro de segunda categoria. Tudo isso, determinado pela quantidade (‘alcance nacional’).Tal raciocínio acaba com estados e municípios. É uma Federação desossada e sem órgãos; segundo, porque, convém lembrar, o curso não se destina ao veículo, mas à formação do jornalista – profissional que muda de emprego como (quando deixam) político troca de partido. Um jornalista do veículo X é formado pelo curso hoje; amanhã, estará no veículo Y (que, veja só, carece de ‘alcance nacional’).
É provável que os organizadores desconheçam a realidade do jornalismo. Por isso, deixaram de solicitar o currículo do interessado. Não entendem ‘do que é feito’ um correspondente de guerra, ou, se preferirem, um repórter em área ou situação de conflito. Escolhem os que consideram potencialmente aptos. Sem levar em conta o profissional, mas o veículo. Trata-se de um contra-senso. Ou conhecem, sim, o jornalista pretendente, como veremos no último item;
d)
‘…A prioridade é para quem já trabalhou com a gente’. Posso até aceitar esse pressuposto, se tiver a boa vontade de entender que tal ou qual jornalista é competente, sério, interessado e demonstrou todas as suas qualidades em outras coberturas de questões militares. Mas, convenhamos, ou se institui um processo seletivo ‘desinteressado’ e democrático, em que tudo o que possa contar seja o valor do profissional, levando-se em consideração os quesitos necessários para o bom desempenho das ações futuras, decorrentes do curso, ou, minimamente, que, uma vez se faça a gentileza de publicar os critérios, os participantes tenham o direito de saber em que exigências levarão ‘vantagem’, em quais outras serão ‘preteridos’, e, por fim e de modo abrangente, quais serão as suas verdadeiras possibilidades em face de tais requisitos.Para encerrar, uma reflexão. Outro dia, o presidente do Botafogo, Bebeto de Freitas, renunciou ao seu cargo por considerar a sua equipe prejudicada pela arbitragem em uma partida decisiva contra o Flamengo. Pode-se dizer, como se disse, que foi ‘choro de perdedor’. Ou uma atitude intempestiva de alguém que jogou a toalha, por se julgar impotente em sua luta contra ‘forças terríveis’ (para usar as palavras de outro que renunciou).
Considero diverso o objeto deste artigo. Proponho-me aqui ao debate. Pelo que concedo este espaço à palavra do CCOMSEx.
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Jornalista