Paco Lamberti, o personagem de Reynaldo Gianecchini na nova novela das 7 da TV Globo, Da cor do pecado, persegue Preta de Souza, a personagem interpretada por Taís Araújo, pelo interior do que parece ser um hotel, e acaba por desembocar no quarto. Enrodilhados na cama, protagonizam uma cena romântica. Preta chama Paco de ‘meu príncipe’. Põe em dúvida as intenções dele de desposá-la, logo ela, uma ‘negra’. Paco e Preta são seguidos de perto por Bárbara Campos Sodré (Giovana Antonelli), que não admite perder o amor de Paco para uma ‘negrinha de São Luís do Maranhão’, na fala da vilã da novela.
Esse tempero principal incrementa a trama da novela escrita pelo estreante João Emanuel Carneiro. A presença de uma atriz negra no papel principal aparentemente se insere nos limites do politicamente correto e certamente contribuirá para diminuir o quociente de exclusão dos negros na história da telenovela brasileira. Mas não é um fato novo. Em 1964, a atriz negra Isaura Bruno estrelava a mamãe Dolores na novela O direito de nascer. Encarnando uma mãe de criação, a personagem ficou restrita à ‘senzala’ na condição de ama-de-leite. Em 1969, estreava na TV a novela A cabana do pai Tomás, inspirada no romance homônomo de Harriet Beecher Stowe. No papel principal, o ator Sérgio Cardoso aparecia como um blackface, um branco com cara pintada de preto, um contra-senso imposto pelos patrocinadores da novela à época.
A tradição do blackface remete aos primórdios do cinema americano. Quando Al Jolson, um ator branco, surgiu no filme The jazz singer, de 1927, com o rosto pintado de preto, estava se valendo, de forma inversa, de artifício do diretor D. W. Griffith, que pintava os atores negros de branco e lhes dilatava com rolha os narizes. Em ambas as situações, tinha-se uma representação caricata dos negros. Aqueles eram tempos ainda de cinema mudo, em preto e branco, se isso puder ser tomado como justificativa, mas o advento de novas técnicas, anos mais tarde, seja no cinema ou na TV, não eliminaria o preconceito.
Fonte do exótico
Na década de 1970, com a novela O bem-amado, de Dias Gomes, a cor chegou à TV no Brasil, mas a mudança tecnológica não trouxe nenhuma mudança substancial na visão histórica que se faz do negro. Novelas de época, veiculadas naquele período, como Escrava Isaura e Sinhá Moça, reproduzem a versão oficial que imputa somente aos brancos a libertação dos escravos.
Em 1996, a TV Manchete levou ao ar a novela Xica da Silva, de Walter Avancini, que acabou por se tornar fenômeno de audiência, até então dominada pela TV Globo. Taís Araújo, a Preta de A cor do pecado, aos 17 anos ousava no papel da polêmica escrava das Minas Gerais. Zezé Motta, que estrelara o filme homônimo no cinema, vivia a mãe de Xica da Silva. Apesar dos holofotes nessa novela histórica, não costuma ser o centro da ribalta, contudo, o lugar de destaque reservado aos negros nas telenovelas. Basta dar uma espiada nas novelas da Globo para observar que os papéis reservados aos atores negros são preponderantemente de serviçais.
Nos tempos do politicamente correto, colocar uma atriz negra no papel principal de uma telenovela, como se faz agora em A cor do pecado, funcionaria como uma compensação, ainda que populista, para a ausência predominante dos artistas negros nos espaços publicitários e midiáticos em geral, no Brasil. Acresce que, no caso da nova novela das 7, mira-se num preconceito com o intuito de combatê-lo ou provocar discussão, e acerta-se num outro ainda maior, qual seja: o estereótipo da negritude como fonte do exótico, do prazer e da luxúria.
Rematado disparate
O título da novela (e sua respectiva trilha principal) é por demais sintomático, tomando de empréstimo a conhecida canção do compositor e violonista carioca Bororó. Reverberando velhas teorias sociológicas, a trama global devolve a mulher negra à senzala, de onde historicamente só saía para satisfazer a sanha lúbrica dos senhores da casa grande. No novo enredo global, a garota pobre de São Luís do Maranhão é instada a deixar a senzala para estimular a existência insípida de um branco bem-nascido. Na trama, a mulher negra é duplamente vitimizada, primeiro como fonte primordial de desejo, depois como usurpadora do homem branco alheio, que pela lógica eugênica deveria pertencer senão a uma mulher igualmente branca.
Neste novo capítulo da dramaturgia novelesca se reverteria a lógica do blackface. O novo papel que a menina negra e pobre é estimulada a assumir a levaria a se transformar numa whiteface, alguém de pele escura que precisa embranquecer para ser aceita. Toca-se então em mais um ponto polêmico da questão – o embranquecimento como condição de aceitação social. Neste caso, tome-se a idéia de embranquecimento no seu sentido cultural e simbólico, diverso das teorias finisseculares de um Sílvio Romero ou de um Nina Rodrigues, que, em fins do século 19, viam no embranquecimento da raça, no seu sentido fenotípico, o caminho mais do que natural para o progresso social e econômico do Brasil.
As noções de brancura racial deveriam soar como rematado disparate num país em que negros e pardos somam 53% da população, mas são velhos estereótipos como o de Preta Nobre que acabam por prevalecer na sociedade, graças ao papel deseducador de uma mídia maniqueísta e preconceituosa e sua linha de montagem de produção de bens simbólicos.
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(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias