Parte da nossa imprensa, senão a totalidade, sente uma atração fatal pela passagem do tempo. Datas são sempre motivo de festejos, mais editoriais que jornalísticos, mas mesmo assim, festejos. Agora mesmo estamos às voltas com a celebração dos 40 anos do Jornal Nacional, carro-chefe do telejornalismo produzido pela Rede Globo, os 15 anos da revista semanal CartaCapital, os 11 anos (isso mesmo: 11 anos) da também semanal Época.
Na verdade, a bem da verdade e do bom senso não se tratam de celebrações e sim de autolouvações. Cada veículo de comunicação à sua maneira destaca a forma como escreveu a história em seus 40, 15 ou 11 anos. São grandiloqüentes nos editoriais. Afirmam ser comprometidos apenas com a verdade, nada mais que a verdade. E que com esforço, zelo, dedicação e a qualidade de suas equipes contribuíram para o progresso do Brasil ao se portarem como espelhos dotados de visão e fala.
Não ficam por aí os autocelebrados. Destacam sua adesão incondicional à prática do bom jornalismo: o que respeita o contraditório, a pluralidade de opinião, sempre ouvindo tantos lados quantos forem em cada tema apurado, e aquele que apura e revisa a apuração das informações levantadas antes de difundi-las. Uma mais que outra vem de afirmar que fiscalizar os poderes da República com isenção e equidade é parte intrínseca da sua atividade editorial.
Matéria oportuna
Esse negócio de ficar celebrando atividade jornalística tem um quê de naftalina, de idéias antiquadas e inadequadas aos tempos pós-modernos que vazam de nossos neurônios (se areia fosse escaparia de nossos dedos). Guardo comigo, então, essa imagem: imagino equipes de jornalistas, diagramadores, fotógrafos, críticos de artes etc. trajando vistosas casacas, bengalas de madeira-de-lei quando não de marfim ao alcance da mão, cartolas deixadas na chapelaria ou senhoras com saias longas rendadas, luvas a cobrir todo o braço e todo esse pessoal encarando a tela de um monitor de 25 polegadas, auxiliadas pelo luxo de potentes Macintosh, banda larga e todo tipo de programa para videografismo. A modernidade está no acessório e a antiguidade nas idéias e costumes humanos, como diria Nietzsche, demasiadamente humanos.
Objetivamente, qual a importância para o bem-estar do povo brasileiro de o Jornal Nacional se autoincensar a propósito dos 40 anos de sua existência? Qual o significado para a evolução das espécies que CartaCapital, que começou mensal, passou a quinzenal e depois a semanal esteja nos lembrando que há exatos 15 anos veio à existência? O fato de Época estar envolvida nos festejos de 11 anos de vida altera a ordem das coisas em escala planetária?
Calma. É claro que estou hiper-exagerando. O intuito é esse mesmo – fazer comparações descabidas para dar uma visão do que se pretende celebrar. Por exemplo, existem datas que marcam a nossa história como espécie humana e apenas por isso já merecia edições especiais em telejornais, revistas e jornais, uma vez que entram na história pela porta da frente influenciando civilizações, povos, costumes. Vale recordar algumas datas como exercício mental e uma mãozinha às nossa briosas equipes editoriais que por algum tempo se dedicaram a produzir material especial tendo como gancho a história de seu veículo de comunicação.
Comecemos pelos 11 anos de Época. Em julho de 1998, portanto há 11 anos, representantes de 120 países reunidos em uma conferência em Roma aprovaram o projeto de criação de um Tribunal Penal Internacional Permanente, com sede em Haia, na Holanda. Não seria oportuna uma reportagem sobre o funcionamento, seus desafios, que causas julgou, que causas estão tramitando naquela corte? Em 14 de julho de 2008, procuradores do tribunal processaram o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, por dez crimes de guerra, três processos por genocídio, cinco crimes contra a humanidade e dois homicídios. Trata-se de uma instância judiciária morosa ou é mais diligente, mostra serviço à causa da humanidade?
Pesquisas espaciais
Como estamos saindo de longo noticiário sobre a ex-gripe suína, atual gripe A (H1N1), talvez fosse bom destacar equipe para investigar o que ocorreu há 91 anos, em 1918, quando o mundo foi vitimado pela então chamada gripe espanhola. O nome politicamente correto é ‘gripe de 1918’ causada pelo vírus influenza. Recuemos um pouco mais. Em 1698, há 311 anos, o engenheiro inglês Thomas Savery inventou e patenteou uma máquina a vapor realmente prática, para esvaziamento da água de infiltração das minas de carvão. A invenção do motor a vapor, no século 18, deu início à Revolução Industrial, facilitando a produção em massa nas fábricas e os transportes. A pergunta é: o motor a vapor, a gripe de 1918 e a criação do Tribunal Penal Internacional não mereceriam edição especial nesse modorrento 2009?
Sigamos para os 15 anos de CartaCapital. Em junho de 1994, portanto há 15 anos, a Assembléia Geral das Nações Unidas, por meio da Portaria 49/184, estabelece a Década para Educação em matéria de Direitos Humanos. Os objetivos são tão ambiciosos quanto necessários para o desenvolvimento humano: criar estratégias para desenvolver uma cultura universal dos Direitos Humanos e inserir conteúdos referentes aos DH em todos os níveis de educação e também no material pedagógico. Terminada a década em 2004 quais os resultados práticos? E no Brasil, será que avançamos da falsa idéia de que direitos humanos rima com direitos dos bandidos, dos marginais? Terá saído do papel nosso ambicioso Plano Nacional de Direitos Humanos, tocado pelo ministro Paulo Vanucchi?
Mas, terminando em 15, poderíamos também pensar em uma edição especial para assinalar os 415 anos da publicação de Romeu e Julieta, escrita por William Shakespeare em 1594. ‘O que era o homem antes de Shakespeare?’, pergunta o crítico literário Harold Bloom, autor de Shakespeare: A Invenção do Humano, estudo monumental sobre o grande gênio da literatura.
Chegamos aos 40 anos do Jornal Nacional. Como somos muito afeitos à marcação do tempo, que tal começarmos a celebrar que em 1509, portanto há 500 anos, o relógio foi inventado em Nuremberg, na Alemanha? Antes o tempo era marcado pelas fases da lua, pelo ciclo solar, pelas catástrofes naturais e são muitos os calendários: indiano, chinês, judeu, cristão, muçulmano, bahá´í, apenas para citar alguns. O tempo exerce sua atração desde o início que não teve início e assim continuará, no dizer do filósofo, até o fim que não terá fim.
Nessas edições comemorativas o que não falta é exercício futurista. Como será o mundo daqui a 11 anos? É a pergunta de Helio Gurovitz, diretor de Redação de Época (edição nº 575, de 25/5/2009). Não seria interessante recuar 400 anos, quando, em 1609, Galileu Galilei inventou o telescópio? O que essa invenção significou para o progresso humano? Quem era o homem por trás do gênio chamado Galileu? Por que apenas em 1980 o papa João Paulo II ordenou um reexame do processo contra Galileu, culminando com o perdão póstumo a 31 de outubro de 1992? Que outros embates importantes foram travados ao longo do tempo entre religião e ciência?
Vamos ao que interessa, o que aconteceu de mais importante há 40 anos? Não penso duas vezes: o homem pisa na lua. E chegou a bordo da missão Apolo 11 pousando na superfície lunar em 20 de julho de 1969, em um local chamado ‘Mar da Tranquilidade’. Os americanos Neil Armstrong e Edwin Aldrin tornaram-se os primeiros homens a caminhar no solo lunar. Este feito não mereceria reportagens sobre o contexto em que se deu a alunissagem? Em que medida tal fato impactou o desenvolvimento de pesquisas espaciais? O que aconteceu com Armstrong, Aldrin após sua passagem pela lua? O que tem sido feito de concreto nesse campo que sempre cativou (e continua cativando) nossa imaginação?
Eventos marcantes
Vamos às estratégias utilizadas pelos veículos. Época optou por desvendar o mundo que teremos daqui a 11 anos. CartaCapital decidiu passar em revista os eventos ditos marcantes dos últimos 15 anos. A semanal da Globo divulga na capa que se trata de ‘edição dupla de aniversário’: de suas 202 páginas, 89 são publicidade de página inteira. A semanal do Mino Carta – que anuncia na capa ‘especial 15 anos’ – ocupa com publicidade de página inteira 59 de suas 170 páginas.
Não perdi tempo para verificar – tanto em Época quanto em CartaCapital – publicidade ocupando 1/2 ou 1/3 de suas páginas. Por esse ângulo não precisa ser Sherlock Holmes para constatar que as edições comemorativas das semanais são a celebração do mercado publicitário e, neste caso de crise econômica mundial, verificamos o vigor de um mercado pujante e em ascensão. Ao leitor, para variar, resta chorar as pitangas: comprou revistas infladas de páginas e levou pouco mais da metade da informação impressa que buscava adquirir. No jargão da propaganda seria o oposto do ‘vale quanto pesa’.
Em todo o oba-oba não encontramos uma linha para reconhecer os erros cometidos, as ‘barrigas’ dadas com estardalhaço ampla e rapidamente divulgadas (lembram do caso da pernambucana Paula Oliveira, aquela que teria sido atacada e mutilada por neonazistas na Suíça?), estatísticas das cartas de leitores insatisfeitos com a linha editorial das revistas ou apontando falhas na apuração das matérias (lembram da capa do Henrique Meireles, presidente do Banco Central, de malas prontas, como se estivesse deixando o governo?).
O Jornal Nacional preferiu jogar confete nos funcionários que trabalham em suas muitas emissoras afiliadas. Não podia dar noutra coisa: um festival de matérias sem nexo, sem liga, imagens da sede física da afiliada, geralmente muito acanhadas ante o visual que estamos acostumados a ver associados à Rede Globo, e algumas matérias bem fraquinhas, coisa de 15 a 20 segundos. Sofrível.
Há algumas semanas publiquei neste Observatório texto com o título ‘O que faz a mídia quando não há o que fazer?‘. Três dezenas de leitores honraram o texto com seus comentários. Ninguém atentou para uma resposta tão simples quanto plausível: quando não tem o que fazer… a mídia arranja um jeito de se autopromover.
Estamos em junho, mas parece que a semana das famosas retrospectivas próprias de fim de ano chegaram antes do tempo. Muito antes. Como vemos, paciente leitor, o que não nos falta é fatos importantes a comemorar. Difícil é distinguir entre o que é comemorado ‘para dentro’, para elevar a moral da tropa, e que deveria ser comemorado ‘para fora’, aqueles eventos que não importa quando ocorreram continuam a influenciar nosso pensamento, nosso conhecimento e nossa vontade.
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Mestre em comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo