Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Darwin em discussão

No número 18, edição de março da revista piauí, saiu um interessante ensaio sobre o darwinismo, mais especificamente ‘Os descendentes de Darwin’, de autoria de Otavio Frias Filho. Ele se qualifica como jornalista e diretor de redação da Folha de S.Paulo apenas, mas para quem lê esse tipo de publicação, certamente não é segredo que ele é doutor pela USP, foi orientando de Ruth Cardoso e assim por diante. Esse ensaio, bastante longo, aliás, anuncia-se como um resumo de livro a ser brevemente editado.

Em primeiro lugar, é relativamente surpreendente um jornalista não necessariamente afeito à biologia dedicar-se a escrever sobre tal tema. A volta do criacionismo fundamentalista poderia ser uma das bases para isso, assim como as discussões envolvendo células-tronco, mas o autor consegue ir além: na verdade, começa com os precursores e os seguidores de Darwin, situa bem o papel do mesmo e começa e termina o texto de maneira surpreendente.

Neste Observatório, vários colaboradores vêm se digladiando em relação ao início da vida, células-tronco, Estado e Igreja – eu mesmo já interferi várias vezes nessas questões. Mas creio que o texto que aponto pode ter uma contribuição em especial.

Além das polêmicas envolvendo o assunto, sem dúvida vai haver quem queira polemizar com o autor: não pretendo cair nesse tipo de pitfall de maneira alguma, apenas tecer alguns comentários.

Colocação inteligente

Na sua digressão, Frias fala em Quetelet, Huxley, Malthus, Marx, Nietzsche e Dawkins, dentre outros. Comenta o positivismo de Comte, inserindo-o no contexto histórico adequado, e se aventura inclusive pelo terreno aberto pelo citado Dawkins, do ‘gene egoísta’. Há sólida base para suas conclusões.

Não vou fazer um resumo do ensaio – se ele mesmo já é a forma reduzida de um livro, criado pelo próprio autor, de que adiantaria eu querer me aprofundar aqui e ali a meu gosto? Em assunto como esse, mesmo antes que saia o anunciado livro é fundamental que se leia o texto na piauí.

Creio que o texto é bastante interessante para fundamentar e até para introduzir e/ou fazer alguém ficar interessado no assunto, para ter opinião própria. Mas é inegável que trata de modo bastante adequado a questão, dando bases ao darwinismo, colocando-lhe alguns limites – não que não possam ser suplantados, apenas em relação ao grau de nossos conhecimentos nos dias de hoje. Não há criacionista que possa criticá-lo, até porque ele coloca uma explicação interessante, não tão radicalmente ateísta quanto Dawkins, mas que seria a de que um ‘homem barbudo’ criou as regras do Universo, incluindo a seleção natural e, como diz a Bíblia, no sétimo dia descansou… Talvez tenha desaparecido para todo o sempre e são essas normas iniciais que persistem fazendo as coisas funcionarem como o são nos dias de hoje. Não deixa de ser uma colocação bastante inteligente.

Comprando uma briga

Frias também cita a questão dos cerca de seis mil anos bíblicos da criação do Universo e a disparidade de tempo com que a ciência marca esse período, muitíssimo mais longo. Acrescento apenas a opinião de um religioso, a quem perguntei justamente isso há alguns anos atrás: ele me explicou, tranqüilamente, que o tempo bíblico não é o mesmo daquele da ciência; em outras palavras, o dia da Bíblia seria muito mais longo – explicação esperta e conveniente, não é mesmo?

O que me surpreendeu no artigo citado foi o seguinte: Frias, na verdade, parece colocar todo o darwinismo e correlatos em uma questão básica – a falência das ciências sociais, que sofrem com o ‘fantasma’ do darwinismo. Ele chega até a ser agressivo: a ciência conseguiu curar doenças, produzir espantosas tecnologias, conhecimentos sem fim e a sociologia ficou no embate de idéias, sem método. Das ciências humanas, comenta que a primeira a perceber isso foi a economia, que se aproximou da matemática e passou a produzir resultados mais concretos (embora pessoalmente eu a considere ainda muito inexata e ligada a interesses conflitantes para ganhar o status de ciência em si). E só mais recentemente a sociologia passou a se valer das ferramentas estatísticas para validação. Não há como negar que ele está comprando uma briga com os puramente humanistas e religiosos, semelhante à minha e de outros com a homeopatia.

Regras diferentes

Sua conclusão, já antevista no início do artigo, é a de que ‘… tendo atingido a consciência e o conhecimento científico, a espécie humana é a única que pode vir a dominar os genes, em vez se ser dominada por eles. Depende das ciências humanas definir se esse futuro será parecido com o pior dos pesadelos ou a melhor das utopias’. Para entender ser dominado ou dominar os genes, que não é questão simples, recomendo ler Frias e vários dos autores por ele citados, especialmente Richard Dawkins.

Vou adicionar algo que não consta do texto mas me parece fundamental nessa discussão toda: o darwinismo praticamente elucidou todos os mecanismos em biologia e nas derivadas áreas biomédicas. Nesse campo tudo ficou mais simples de ser compreendido. Contudo, não há darwinismo nas chamadas ciências exatas: ele não consegue explicar as leis da física, o big bang, o universo, enfim. Tampouco a procura pela partícula subatômica fundamental, a menor de todas, a partícula de Higgins, mais conhecida, ironicamente, como a ‘partícula de Deus’. Mas o ‘homem barbudo’ não poderia ter deixado regras diferentes para fenômenos físicos e biológicos? Essa é uma longa discussão, que certamente não cabe aqui.

Evidentemente não sou criacionista e apenas me apropriei da expressão ‘homem barbudo’ por achar a mesma muito interessante. Mas o ensaio é uma lição de o que significa Darwin, suas bases e seus seguidores e o caminho para a compreensão e melhora do futuro, com suas proposições. Humildemente, recomendo a leitura do mesmo.

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo