Quando penso que nada mais pode me surpreender no jornalismo, e isso que a gente vê coisas do arco da velha, eis que o outrora valoroso e impoluto jornal A Tribuna, de Santos (SP), parece ter perdido por completo o senso do ridículo ao insistir com enjambrações do mais puro provincianismo e de desapreço ao bom gosto e inteligência do leitor.
Lambanças como tentar a todo custo catapultar a candidatura de um mal-afamado deputado à presidência do Santos FC; submeter a cidade ao transtorno de seguidas promoções de fundo comercial com a interdição das avenidas da praia aos domingos – no último dia 6/7 foi a vez da cachorrada passear à beira-mar, numa tal de ‘Cãominhada’ que, no fundo, não passa de um pretexto para vender anúncios de rações, pet-shops e afins – o que pode ser considerado a cereja do bolo em matéria de pieguice –, a ostensiva badalação em torno do casamento de Robinho, na semana passada. Enfim, uma sucessão de bizarrices que, de tão repetitivas nos veículos de informação dos Santini, além de perplexidade, já viraram motivo de chacota na região.
Num momento em que tanto se questiona a decisão do STF de acabar com a exigência de diploma para o exercício da profissão, pataocadas como estas acabam reforçando a tese de que a boa prática jornalística efetivamente transcende a necessidade de formação específica, sendo muito mais uma questão de lastro pessoal do que outra coisa. A exemplo do próprio futebol, sem um mínimo de aptidão e talento não há mágica que funcione, como denota o infrutífero esforço de A Tribuna para melhorar o nível do jornal. Esforço que parece esbarrar na própria falta de vocação jornalística dos proprietários, filhinhos de papai que nunca se deram ao trabalho de escrever um mísero texto que servisse, entre outras coisas, para mostrar o caminho das pedras a seus funcionários.
Austeridade e comedimento
É claro que é preciso levar em conta as injunções que normalmente afetam a imprensa regional, das quais mesmo o virtual monopólio do grupo da Baixada Santista não está livre, na forma de concessões feitas a partir da velha lei de convivência pacífica, calcada na troca velada de favores, típica da mentalidade provinciana que ainda impera na região, e que permite que meia dúzia de famílias endinheiradas e políticos influentes posem de donos da cidade. Assim, dentro do famoso toma lá dá cá, há que se agüentar coisas como as tais promoções caça-níqueis que atazanam a vida da população nos fins de semana, entre competições e tudo mais que em sua maioria poderiam ser realizadas em outros pontos menos movimentados, como o centro da cidade ou bairros da periferia, estes, sim, carentes de lazer. Um ou outro evento de mais envergadura, vá lá, mas interditar a orla da praia para confraternização de cachorro, por mais que os bichos mereçam, que o pessoal tenha todo a paciência do mundo com o cheira daqui, cheira dali, e ainda recolher civilizadamente os respectivos dejetos da bicharada, francamente, não é a melhor coisa – e muito menos, o local adequado – para se fazer numa manhã de domingo.
Mas nada que se compare ao agito ainda maior que recheou as páginas e programações tribunísticas do material que vem se tornando a especialidade da casa: o casamento de Robinho, que fez com que o jornal extrapolasse todas as medidas daquilo que se entende por um jornalismo que se preze. Afinal, que mérito pode haver no teor meloso e deliberadamente bajulativo do extenso material publicado nas edições dos dias 9 e l0, muito mais condizente com uma Caras da vida do que para um jornal com a tradição de austeridade e comedimento de A Tribuna – austeridade e comedimento até demais, segundo as más línguas. Que se ainda se restrito à coluna social, mas no caderno de esportes, é como disse, de início, quando a gente pensa que já viu absurdos que chega no jornalismo, vem a Tribuna e consegue se superar.
Incompetência e interesses ocultos
Exagero? Então o que dizer de um laudatório que começa por um título tipo ‘As pedaladas do amor’ – e cuja diagramação reproduz, no meio da página, o próprio convite da festa, todo em rosa, com flores e borboletas ladeando o casal de pombinhos? Que por sinal vivem juntos há um bom par de anos e até filho já tem, se é que alguém liga para isso. Tudo bem que os tempos são outros e que tudo passou a ser muito natural, ainda mais quando se tem dinheiro e fama, e num evento com tanta ostentação e pompa nem é de bom tom reparar nesses, digamos, detalhezinhos bobos, como a nota preta gasta com a locação do sofisticado Casagrande Hotel, no Guarujá, com 50 suítes reservadas para os convidados mais ilustres, quase todos ligados à bola, entre os quais boa parte de colegas da seleção, inclusive o chefe Dunga.
Mas como a festa parece ter sido feita para ser uma reedição tupiniquim do cinematográfico casamento de Ronaldo com a modelo Daniella Cicarelli, num castelo na França, as extravagâncias e as próprias gafes, sem falar da heterogeneidade dos convidados, não poderiam mesmo ficar sem a devida contrapartida da imprensa. No terreno do escracho, bem entendido, a cargo da turma do Pânico, por exemplo, pois nada como cada macaco em seu galho.
E por cada macaco em seu galho entenda-se a percepção da necessidade de situar corretamente os fatos, ou seja, de repórter e editor saber separar o jornalismo de respeito e conteúdo do glossário de frivolidades e breguice que A Tribuna estampou sem o menor pudor em suas páginas. Como nem o insípido e inodoro jornalismo eletrônico da casa ousou fazer.
Mancadas acontecem na imprensa todos os dias, como todo mundo sabe, mas quando aberrações desse tipo se tornam freqüentes na vida de um veículo de informação, das duas, uma: ou a incompetência é muito grande, ou está se juntando a fome com a vontade de comer, ou seja, interesses ocultos estão falando mais alto. No caso de A Tribuna, a coisa parece pior ainda, pois tudo indica que se trata da conjugação das duas coisas, serviço encomendado e malfeito.
Inconformismo com baixa qualidade
Fico matutando, o que leva um órgão de tradição e longo histórico de serviços prestados à comunidade – afinal, estamos falando de um jornal centenário, no qual militaram uma infinidade de nomes famosos de nossas letras – a enveredar por essa linha apelativa e desabonadora. Seja o que for, uma coisa é certa: de batatada em batatada, nem a falta de concorrência à altura é capaz de salvar a reputação de um jornal que, não obstante os recentes esforços para melhorar seu desempenho, vai sobrevivendo mais por força do hábito arraigado de leitores que se acostumaram a lê-lo como se fosse a bula de um remédio ou coisa parecida.
A quem de repente possa achar que alguma bronca pessoal esteja por trás dessas críticas, garanto que é exatamente o contrário, é por respeito e gratidão que tenho pelo jornal que tenho levado a peito a empreitada que muitos me alertam equivaler a uma espécie de suicídio profissional no âmbito local. O que é bem plausível, considerando que bem ou mal o grupo dos Santini ainda é a melhor opção de emprego decente na região, principalmente no setor de jornalismo impresso, em que os concorrentes Jornal da Orla e Diário do Litoral estão longe de fazer frente a essa hegemonia.
Falei em gratidão com a sinceridade de quem acaba de fazer essa descoberta a partir da indagação despretensiosa de minha mulher, que me vê consumir horas que poderiam ser de lazer e de curtição ao meu caçulinha, que acaba de completar dois anos, com uma tarefa que, se for pensar direito, parece realmente burrice das grandes. Afinal, trata-se de algo assim como cutucar a onça com vara curta, arrumar sarna para se coçar, e isso a troco de quê? Quando muito, um ou outro elogio de velhos colegas e leitores esporádicos, pois retorno financeiro que é bom continuo como nos três anos que fiquei esperando inutilmente que um ex-editor, cabra safado, desta mesmo A Tribuna, cumprisse com a promessa de comparecer com algum pro-labore, ou seja: a ver navios. Como, aliás, continuo fazendo quase diariamente aqui em Santos, literalmente falando.
Mas como uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, como já dizia o grane Juarez Soares, talvez o maior repórter de campo dos tempos em que o rádio imperava nas transmissões esportivas, volto a dizer: o que me anima a dar uma de ombudsman de A Tribuna é o inconformismo com o jornalismo de baixa qualidade que vem praticando há muito tempo. Se não desde o falecimento de seu fundador, o velho Nascimento, como era conhecido, o sócio que era de fato jornalista, e isso lá pela década de 60, mas seguramente a partir da chegada de uma nova geração de Santinis que vêem o jornal tão somente pelo aspecto financeiro. Com o que testemunhas de um período especialmente prolífico e gratificante do centenário matutino, como eu e vários outros antigos colegas e contemporâneos com que às vezes cruzo, simplesmente não se conformam. Daí essa espécie de cruzada que o crescente prestígio deste Observatório da Imprensa ajuda a tornar menos quixotesca.
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Jornalista, Santos, SP