Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

De ofício maldito a refúgio profissional

No fim do século 19, a economia norte-americana experimentava um acachapante modelo liberal, permeado por monopólios, cartéis e magnatas com semblantes de poucos amigos. Ícone desse período foi o empresário de estradas de ferro William Vanderbilt, a quem é atribuída a frase: ‘O público que se dane!’ Esta pérola ao avesso teria sido pronunciada em 1882 a jornalistas de Chicago que teriam questionado Vanderbilt sobre a linha Nova York-Chicago.


A resposta demonstrava uma falta de tato impressionante, porém não singular. Júlio Afonso Pinho, em seu artigo O contexto histórico do nascimento das relações públicas, explica que, à luz da época, ‘(…) havia denúncias referentes ao pagamento da mão-de-obra com salários de fome (…)’, além de escândalos que ‘(…) expunham à mostra os truques sujos utilizados pelas grandes empresas para eliminar as suas congêneres de menor porte (…)’.


Outros homens de negócios importantes também estavam na berlinda. Dentre eles, John Rockefeller, do ramo do petróleo, cuja incrível soma de erros havia lhe custado a reputação perante a opinião pública. Consta que Rockefeller era obrigado a valer-se de seguranças para proteger-se da aversão dos populares, aversão esta incitada – ainda mais – pela imprensa, já acostumada à indiferença do magnata. E o estardalhaço dos jornais – embora, não raro, sensacionalistas – não era de todo descabido. Além de práticas comerciais antiéticas, as empresas de Rockefeller costumavam ser implacáveis com os trabalhadores, sobretudo com os grevistas.


Consagração dos métodos


As atitudes do homem Rockefeller, todavia, não seriam endossadas pela imagem legada à história de um empresário bem-sucedido e filantropo. Tal dualidade não se trata de uma obra do acaso. Nesse período, entre o homem e a imagem, foram gestadas, pela controvertida genialidade de Ivy Lee, as relações públicas.


Lee – então jornalista econômico, com passagem por jornais importantes, como o New York Times – optou por deslocar-se das redações para as empresas, oferecendo, então, um serviço diferenciado, que pretendia ‘fazer a divulgação de notícias’ confeccionadas no interior das próprias empresas, mas que não poderiam ser confundidas como ‘agenciamento de anúncio’, segundo esclarece em sua célebre declaração de princípios – considerada a certidão de nascimento das relações públicas e do vinculado trabalho de assessoria de imprensa. Em tal carta – remetida aos editores –, Lee coloca-se à disposição dos profissionais de imprensa adotando um tom amigável, algo inusitado em se tratando de mensagens oriundas de grandes empresas privadas até aquele momento.


A estréia do jornalista no novo ramo que acabara de vislumbrar deu-se em 1903. Mais tarde, na segunda metade da década, Lee protagonizou, quiçá, o seu primeiro grande case, no setor de Divulgação e Propaganda da Pennsylvannia Railroad, implicada em um grave acidente na Pensilvânia que atraiu a atenção e o enfoque hostil da imprensa. E foram justamente os seus colegas jornalistas que ocuparam o foco de sua estratégia. Luiz Amaral, no estudo ‘Assessoria de imprensa dos Estados Unidos’, publicado em coletânea organizada por Jorge Duarte, revela que, no ensejo, Lee ‘levou repórteres, por conta própria, à área do desastre, colocou engenheiros à disposição do grupo para explicar as causas da tragédia, facilitou entrevistas com os dirigentes da empresa’ e, finalmente, ‘insistiu nas mediadas de atendimento às vítimas’, inspirando as ações padrão até hoje adotadas em ocorrências de crises (vide a argúcia das empresas aéreas diante de acidentes envolvendo seus aviões).


O fervor sensacionalista dos jornais foi aplacado e a crise institucional, debelada. Lee permaneceu na Pennsylvannia Railroad até 1914, ano em que iniciou o seu trabalho com a família Rockefeller, consagrando os seus métodos e passando a ser considerado o pai das Relações Públicas.


O case Rockefeller


O empresário John consistia um caso clássico em que as ações do gestor confundem-se, perante a opinião pública, com as práticas da empresa e vice-versa. O magnata era reconhecido e odiado tanto quanto as suas máquinas de fazer dinheiro (e desafetos) – como a Colorado Fuel and Iron Co. Diante disso, a estratégia do ex-jornalista baseou-se no manejo da imagem de Rockefeller por meio de ‘(…) ações de filantropia e benemerência, o que culminou por notabilizá-lo como grande filantropo (…)’, explica Júlio Afonso Pinho. O trabalho funcionou e, ainda hoje, uma Fundação Rockefeller portentosa exibe ações sociais pelo mundo.


O espantoso êxito no modelamento da opinião pública, costurado por técnicas de comunicação organizacional, inspirou o conhecedor da psicologia das massas (e sobrinho do afamado Sigmund Freud) Edward Bernays a afirmar: ‘O assessor de relações públicas não é um mero fornecedor de notícias; ele é logicamente um `criador de notícias´.’ Bernays, aliás, conforme faz saber Luiz Amaral, é considerado o responsável pela popularização da expressão ‘assessor de Relações Públicas’, nos primórdios da década de 1920. Manuel Carlos Chaparro, por sua vez, é enfático ao afirmar que Rockefeller ‘foi escolhido (…) para ser o santo de um milagre impensável (…)’.


O efeito planejado por Ivy Lee – que beirava a manipulação – não poderia passar incólume por seus contemporâneos. O jornal Editor and Publisher desconfiava dos métodos de Public Relations, na medida em que eles ajudavam ‘(…) os homens de negócios a promover como notícia, de graça, o que, de outra forma, seria publicado como anúncio pago’. Lee chegou ainda a ter o seu trabalho apontado como ‘vergonhoso’ por um senador e recebeu o epíteto de ‘venenoso’ – ‘gentileza’ do escritor Upton Sinclair. Em meio ao afã das críticas, sobrou até mesmo para Bernays – ele, também, um pioneiro das relações públicas –, acusado de ser ‘uma ameaça’.


Migração para as assessorias


Bem mais tarde, já em 1962, no clássico Para entender Relações Públicas, Cândido Teobaldo de Andrade levanta suspeições ao mencionar que, na ocasião de Lee, práticas escusas – como oferecimento de empregos rendosos a jornalistas – complementavam os esforços em benefício dos clientes da assessoria. No recente Tudo é Comunicação, Paulo Nassar retoma a polêmica, ao lembrar que Ivy Lee, no desempenho de sua função, ‘(…) fez a cabeça e também, segundo os seus inimigos, o bolso de mais de uma centena de jornais ianques’.


O fato é que muitas das críticas – levantadas à época do case Rockefeller –, referiam-se à essência do trabalho sugerido por Lee, independente de seus desvios éticos, que só incendiavam mais a oposição. Lee manteve-se no ofício, chegando a constituir uma empresa de consultoria de relações públicas em 1916, a ‘Lee e Harris e Lee’.


Especialmente se relativizado com as críticas, o legado de Lee é desconcertante. Luiz Amaral faz saber que, segundo projeções e estatísticas oficiais do Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, ‘o emprego de especialistas em Relações Públicas deve aumentar mais rápido do que a média de todas as ocupações até o ano de 2006’.


A migração de profissionais de comunicação das redações convencionais para as assessorais de imprensa ocorre em larga escala. Muitos recém-formados em comunicação, inclusive, sequer passam por redações, abrigando-se, antes, em assessorias. Pesquisa engendrada pelo Dieese no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, em 1995, revela que ‘(…) cerca de um terço dos jornalistas profissionais com carteira assinada trabalhava fora das redações. Ou seja, nas fontes’, conclui Chaparro.


‘Nosso assunto é exato’


Dados como este não deixam de soar irônicos se levarmos em conta que muitos críticos do trabalho de Lee estavam justamente nas redações. Mais irônico ainda é constatar que, hoje, incluídas nas estruturas administrativas dos próprios jornais e demais veículos de comunicação, existem assessorias de imprensa e/ou de relações públicas. E não somente nas mídias. Como bem relaciona Jorge Duarte, as assessorias – com formatação estrita ou ampliada, como gabinetes de comunicação social – estão na estrutura pública (das empresas estatais aos poderes executivo, legislativo e judiciário), no terceiro setor, nos movimentos sociais (dos sindicatos ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e, até mesmo, no suporte de pessoas físicas (de artistas a políticos).


Como se vê, já não é necessário ser um magnata do petróleo para lançar mão dos polêmicos serviços que Ivy Lee oferecia há mais de 100 anos.


Ivy Lee é considerado o pai das Relações Públicas. É de sua autoria uma famosa declaração de princípios que explicava e apresentava algumas diretrizes do ofício que acabara de vislumbrar. O texto, que segue abaixo, revela a habilidade do jornalista e antecipa o modelo de funcionamento das assessorias modernas.




‘Este não é um serviço de imprensa secreto. Todo o nosso trabalho é feito às claras. Pretendemos fazer a divulgação de notícias. Isto não é agenciamento de anúncios. Se acharem que o nosso assunto ficaria melhor na seção comercial, não o usem.


Nosso assunto é exato. Maiores detalhes, sobre qualquer questão, serão dados prontamente. E qualquer diretor de jornal interessado será auxiliado, com maior prazer, na verificação direta de qualquer declaração de fato.


Em resumo, nosso plano é divulgar, prontamente, para o bem das empresas e das instituições públicas, com absoluta franqueza, à imprensa e ao público dos Estados Unidos, informações relativas assuntos de valor e de interesse para o público.’


Os precursores


** Ivy Lee é considerado o pai das Relações públicas. Por meio da criação da figura do Press Agente, formatou a prática do relacionamento institucional com a mídia, que culminou com as assessorias de imprensa. Antes dele, contudo, alguns precursores ensaiaram passos na direção da comunicação organizacional como conhecemos hoje.


** Theodore N. Vail: Em 1883, na AT&T, iniciou uma sondagem de opinião, por correspondência, com usuários da Bell Telephone Company.


** Phineas Taylor Barnum: polêmico e de caráter duvidoso, encetou, após a guerra civil americana, intensa campanha alavancando o circo Barnum, a despeito das insalubres condições de trabalho da equipe e da falta de zelo com os animais.

******

Pesquisador do Grupo de Pesquisa COMULTI – UFAL/ COS/ CNPq e mestrando do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco