Duas importantes – e polêmicas – questões da mídia no Brasil voltaram ao noticiário: a exigência do diploma em Jornalismo para o exercício da profissão e a classificação indicativa de programas televisivos vinculada ao horário de exibição estipulado pelo Estado. Desde 30/11, uma votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) no Supremo Tribunal Federal (STF), está suspensa. A ação contesta o dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que classifica como infração administrativa a transmissão de programa de rádio ou televisão em horário diferente do previsto pelo governo federal e pune com multa os canais que descumprirem a norma.
Para emissoras de TV que defendem a autorregulação, cabe aos pais, e não ao Estado, escolher a programação adequada para seus filhos. A portaria que regula a classificação indicativa foi publicada em 2007 após um amplo debate. Também em 30/11, o Senado Federal aprovou em primeiro turno uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que defende a obrigatoriedade do diploma específico em Jornalismo para exercício da profissão. Se for aprovada em segundo turno, a PEC seguirá para a Câmara dos Deputados. Em 2009, o STF decidiu que a exigência do diploma de Jornalismo e do registro profissional no Ministério do Trabalho era inconstitucional. Para o Supremo, o decreto-lei que previa esta exigência, promulgado durante a ditadura militar, feria a liberdade de imprensa.
O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (13/12) pela TVBrasil debateu estes temas com a presença de Venício A. de Lima, em Brasília, e Muniz Sodré, no Rio de Janeiro. Muniz Sodré é mestre em Sociologia da Informação e Comunicação e doutor em Letras. Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional. É autor de mais de 30 livros sobre Comunicação e Cultura. Em Brasília, o convidado foi o sociólogo e jornalista Venício A. de Lima. Pós-doutor pelas Universidades de Illinois e Miami-Ohio, é fundador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília (UnB). Acompanhou, como assessor, as decisões sobre o tema “Comunicação” na Constituinte de 1987/88.
Debates embargados
Em editorial, antes do debate no estúdio, Alberto Dines criticou a “cortina de silêncio” em torno destes dois assuntos. “A mídia que deveria ser a maior interessada em discuti-los abertamente faz o possível e o impossível para escondê-los da sociedade. E o pretexto desta clandestinidade é sempre o mesmo: garantir a liberdade de expressão”, sublinhou o jornalista. Na avaliação de Dines, a proteção “ao futuro cidadão” está prevista na Constituição, mas nunca foi seguida pelos concessionários de rádio e TV. Em relação ao diploma em Jornalismo, ele questionou: “O jornalismo é profissão? Se não é uma profissão específica, quem vai defender a integridade da indústria jornalística: os seus acionistas?”.
Também antes da discussão ao vivo, o Observatório exibiu entrevistas com diversos ângulos destas duas questões. Para Veet Vivarta, secretário-executivo da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), a interpretação dos ministros do Supremo que votaram a favor de que a classificação indicativa dos programas não seja vinculada ao horário de exibição é equivocada. “É uma percepção muito rasa da complexidade do tema que está em discussão. Há confusões muito básicas, como a de trazer o tema da liberdade de imprensa para este debate”, disse. O que está em jogo, de acordo com o representante da ANDI, é a regulação do entretenimento, como novelas, filmes e séries televisivas, e não conteúdo noticioso. O poder de decisão deve ser sempre dos pais, mas na sociedade atual, onde os responsáveis trabalham fora, é preciso ferramentas como a classificação indicativa para apoiar as famílias.
A educadora Regina de Assis chamou de “absurda” a proposta de mudar as regras da classificação indicativa, que foi produto de um intenso debate entre emissoras de televisão e a sociedade civil. “Não se chegou ao resultado que se chegou no Brasil de uma maneira irresponsável. É o contrário disso”, disse. Regina de Assis ressaltou que, neste caso, a autorregulação não é recomendada porque há programas inadequados em horário nobre. É uma “falácia”, na avaliação da educadora, dizer que apenas a família deve orientar as crianças sobre o que é permitido assistir em cada idade porque os pais trabalham e não têm como fiscalizar.
Quem cuida do que as crianças assistem?
Para o advogado Célio Borja, ex-ministro do STF, o artigo 220 da Constituição é claro quando diz que compete à Lei Federal regular os divertimentos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles e a faixa etária a que não são recomendados. “Eu acho que não se deve desobedecer a Constituição porque as consequências são sempre nefastas”, alertou. No debate ao vivo sobre a classificação indicativa, Venício Lima disse que os radiodifusores nunca aceitaram a norma porque não querem prejudicar a grade de programação. Além disso, as crianças têm um grande poder de decisão sobre o que a família consome. “As crianças se transformaram em um grande alvo do mercado publicitário”, afirmou o sociólogo.
Para Muniz Sodré, a autorregulação pelos grupos de mídia fere a Constituição. “A Constituição deixou de ser um remoto instrumento político, segurando apenas o ordenamento jurídico, para ser uma coisa que intervém na vida social. Essa regulamentação da classificação indicativa é uma prova de atualidade e de progresso da Constituição. Não é uma intervenção detalhista, mas sim de natureza Ética”. Sodré ponderou que, do ponto de vista das organizações de mídia, preocupadas em “evitar o vermelho no final do mês”, a Ética é apenas corporativa; por isso, há um choque de interesses.
Dines destacou que, ao contrário do que o relator da ação, o ministro Dias Toffoli, disse em seu voto, os Estados Unidos – pátria do liberalismo – têm um mecanismo de classificação indicativa e o órgão regulador pode suspender a exibição de programas inadequados. Venício Lima lembrou que outros países democráticos, como o Canadá, adotam normas de intervenção nos programas televisivos com o mesmo poder da lei brasileira. “Há países, como os nórdicos, que são extremamente rigorosos”, disse. Para o sociólogo, se o Supremo decidir alterar a norma da classificação indicativa, o Brasil ficará atrasado nesta matéria em relação a outras democracias liberais.
O papel da mídia
Os partidos políticos – e talvez parte dos juízes – não conseguiram entender o papel e o peso da mídia nas relações sociais hoje, na opinião de Muniz Sodré. “Não creio que a questão complicada da mídia, a formação de consciência – principalmente jovem, que é plástica – e o peso que ela tem, direta ou indiretamente, foram devidamente assimilados pela magistratura”, avaliou o professor.
Na reportagem exibida pelo Observatório sobre a necessidade de diploma em Jornalismo, o ex-ministro Célio Borja afirmou que esta profissão não tem base científica. “O Jornalismo tem, quando muito, uma base técnica. É uma atividade tecnicamente regulada, mas não cientificamente. Um jornalista bem formado, ou em uma escola técnica, ou em uma universidade, de onde for, é muito superior, penso eu, do que aquele que não tem o preparo técnico. Portanto, rigorosamente de acordo com a Constituição, não há necessidade de diploma ou de certificação de natureza científica para poder exercer a profissão de jornalista. E isso já foi resolvido pelo Supremo”.
Regina de Assis ressaltou que não se pode confundir liberdade de imprensa com liberdade de expressão. “A liberdade de expressão é garantida, desde que não fira o direito alheio. E ela é exercida na internet, na televisão, nos jornais e revistas. Agora, liberdade de imprensa exige critérios éticos, políticos, estéticos para existir. Não é o mercado que vai dar ao profissional esta visão, esta capacidade de reflexão e de crítica. É a universidade”.
Liberdade de expressão
Ricardo Pedreira, diretor-executivo da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), explicou que a instituição está apenas acompanhando o caso, não participou do processo junto ao STF, mas considera adequada a extinção da exigência do diploma. “Fere o princípio da liberdade de expressão porque é como você pretender que alguém, para escrever um livro, precise também ter uma pré-qualificação. Você vai estar limitando a liberdade de expressão dessas pessoas”.
Na avaliação de Celso Shroeder, secretário geral da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), a votação no Senado representa um avanço. “O Parlamento, sintonizado com a opinião pública brasileira, propôs esta emenda que, no nosso ponto de vista, de uma vez por todas, vai encerrar esse falso debate: se a formação universitária, se a formação de terceiro grau é necessária ou não pra esse exercício dessa profissão tão importante para a democracia e para o povo brasileiro. Nós achamos que é fundamental e ficamos muito satisfeitos com esta vitória estrondosa, uma vitória significativa: 65 votos a 7 no Senado. Nossa expectativa é que isso se repita e também na Câmara dos Deputados isso possa acontecer”.
Dines ressaltou que a avaliação do Supremo de que jornalismo não é profissão está equivocada e relembrou que desde o Império Romano havia jornalistas. Dines comentou que, durante a sessão que decidiu pelo fim do diploma, o ministro Gilmar Mendes comparou jornalistas a chefes de cozinha. “Ele não pode chegar de repente em um voto no Supremo, uma coisa que vai ficar para a história da Jurisprudência, e dizer que o jornalista é igual e um chefe de cozinha”, afirmou.
Qualificação necessária
Venício Lima avalia que o exercício da profissão de jornalista exigirá, cada vez mais, a qualificação dos profissionais e que as empresas buscarão profissionais bem preparados. No entanto, o sociólogo não acredita que o diploma específico em Jornalismo seja necessário. Dines comentou que se pode exigir que o curso de Jornalismo passe a ser uma pós-graduação ou um mestrado profissionalizante, o que permitiria que pessoas formadas em outras áreas exercessem a profissão. “Agora, a simplificação, a facilidade com que se levantam esses pretextos do tipo ‘atentado à liberdade de expressão’, está tirando da liberdade de expressão toda a sua preciosidade, o seu caráter sagrado”.
Muniz Sodré se disse chocado com o depoimento do ex-ministro Célio Borja, que situou o Jornalismo fora do ramo das Ciências. “Claro que não é Ciência. Direito também não é Ciência. Nunca foi. Eu cito o famoso Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, de Karl Marx, onde ele faz uma distinção, que depois foi retomada pela filosofia francesa, entre Ciência e ideologia, e junto com a ideologia estão as normas jurídicas, está o Direito, está a Religião, está a própria Filosofia. As Ciências, ele coloca ao lado das Ciências Naturais. Não há Ciência no Direito, nem na Administração”.
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Cortina de silêncio
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 623, exibido em 13/12/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Um debate sobre dois assuntos fundamentais para a qualidade da mídia brasileira está mantido debaixo de uma pesada cortina de silêncio. A mídia que deveria ser a maior interessada em discuti-los abertamente faz o possível e o impossível para escondê-los da sociedade. E o pretexto desta clandestinidade é sempre o mesmo: garantir a liberdade de expressão.
O primeiro tema-tabu tem a ver com o conteúdo do que é oferecido na televisão às crianças e jovens. Está inscrita na Constituição do país, em vigor há 23 anos, uma cláusula que obriga as emissoras de rádio e TV a adequar sua programação às diferentes faixas etárias. É o que se chama classificação indicativa. Pais e responsáveis precisam conhecer previamente o teor de determinados programas e isso só pode acontecer se forem classificados previamente e recomendados para determinados horários.
A proteção ao futuro cidadão está prevista na Constituição porém jamais foi obedecida pelos concessionários de rádio e TV. É uma das tais leis que não colaram, embora tanto os governos de FHC como os de Lula tenham se empenhado em regulamentá-la e implementá-la. Este Observatório da Imprensa vem denunciando a ilegalidade desde 1999; ao assunto já dedicamos cinco edições, sendo que uma delas com a participação do então secretário de Direitos Humanos José Gregori.
A classificação da programação existe nas principais democracias do mundo, inclusive nos Estados Unidos, onde o Estado, além de classificar, pode até retirar do ar programas obscenos, indecentes e profanos. As corporações de mídia alegam em sua defesa que a proteção das crianças e jovens é um atentado à liberdade de expressão. Argumento enganoso, desonesto, sobretudo porque as empresas de mídia têm medo de discuti-lo publicamente.
A outra questão que está sendo surrupiada da agenda nacional diz respeito à obrigatoriedade do diploma para o exercício do Jornalismo. Nela está embutida outra questão, transcedental: o Jornalismo é profissão? Se não é uma profissão específica, quem vai defender a integridade da indústria jornalística – os seus acionistas?
A questão do diploma já rendeu seis edições deste Observatório e deveria render muito mais. Tudo o que se refere a um bem público deve tornar-se público.