Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

De volta para o futuro

Se realmente passar a vigorar o acordo firmado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), teremos, até o final deste ano, segundo a revista IstoÉ (edição 1.951, de 21 de março de 2007), de nos adaptar às novas regras ortográficas. A partir daí todo o acervo bibliográfico brasileiro torna-se ortograficamente obsoleto e começa a fase de transição. A propósito do tema, permitimo-nos as considerações a seguir.

Em 1986, tão logo os meios de comunicação noticiaram o acordo entre os países onde o português é língua oficial objetivando uniformidade de escrita, vozes se levantaram contra o radicalismo das propostas, então defendidas pelo filólogo Antônio Houaiss, que propunha, inclusive, a eliminação dos acentos em palavras paroxítonas e proparoxítonas. Em 1990, reuniram-se novamente as delegações dos países envolvidos, firmando um novo acordo, menos radical que o anterior.

As dez maneiras de escrever ‘sê’

Acabo de reler A nova ortografia da língua portuguesa, editada pela Ática em 1991, obra na qual Houaiss esmiúça o acordo ora ratificado. Segundo o autor, ‘a existência de duas grafias oficiais da língua acarreta problemas de redação de documentos em tratações internacionais e na publicação de obras de interesse público’. Para ele, ‘Portugal, o Brasil e os cinco países africanos de língua portuguesa reconhecem que a inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas dificuldades de natureza lingüística, mas também de natureza política. Daí o esforço desses países em efetivar o novo Acordo’.

Aqueles que aguardam um sistema ortográfico bem mais simples que o vigente, ficarão frustrados. Não há dúvida, entretanto, de que, sob certo sentido, caminha-se para uma escrita um pouco mais simplificada. Não há como negar, também, que a maior dificuldade da ortografia portuguesa diz respeito ao seu caráter etimológico; estão aí os alfabetizadores para atestar quão complexa é a passagem da fase fonética para a ortográfica num idioma em que o fonema ‘sê’, por exemplo, é escrito de dez maneiras diferentes. Quanto a esse aspecto, o projeto é omisso e o intrincado uso das letras continuará sendo um problema para o usuário da língua.

Mudam acentos, sai trema

Basicamente, o acordo trata da acentuação gráfica e uso do hífen. Os idealizadores pretenderam privilegiar as normas cultas dos países de língua portuguesa, recomendando, assim, a dupla grafia em várias palavras segundo as respectivas normas. Assim, o futuro dicionário do português registrará, por exemplo, fato e facto, matinê e matiné, Vênus e Vénus, cômodo e cómodo, gênio e génio etc., formas correntes, respectivamente, no Brasil e em Portugal. O dicionário vai receber uma sobrecarga de formas inusitadas aqui ou além-mar e, nesse sentido, desnecessárias. Um estudante brasileiro, por exemplo, que registrar a forma fémur estará escrevendo corretamente, porque a norma lusitana passa a ser aceita no Brasil, onde a pronúncia da vogal tônica é fechada. No mínimo, um pouco estranho!…

O acordo,apesar disso, avança ao retirar acentos de palavras como vôo, pára (v.), pêlo (s.), vêem etc., cujas pronúncias, como paroxítonas, independem de sinal gráfico. Por outro lado, ao eliminar sumariamente o trema, retira de circulação – como já o fizera Portugal – uma notação importante para marcar a pronúncia do ‘u’ átono dos grupos que, qui, gue, gui. Em palavras desconhecidas, o leitor certamente terá dificuldades e os dicionários terão de fazer uma indicação fonética.

Algumas contradições

Quanto ao uso do hífen, simplifica-se assunto de reconhecida complexidade. Só para exemplificar, cite-se o prefixo auto, com que se usa atualmente o hífen quando a palavra seguinte começa com vogal, h, r ou s. Há mais dez prefixos nessa situação. Com o acordo, será usado o hífen apenas quando o segundo elemento começar com h ou com a mesma vogal com que terminou o prefixo.

Por outro lado, talvez caiba questionar até o alcance e a importância dessa uniformização ortográfica, que, ao admitir duplas grafias, já desuniformiza o pretensamente uniformizado. Imagina-se que ação e aspecto (no Brasil, mais comum que aspeto), por exemplo, continuarão assim nas publicações dos livros brasileiros, que,chegando à Europa, vão confrontar-se com as formas lusitanas acção e aspeto. Contraditório, não?

Proposta não deselitiza

Quer-se, finalmente, levar a efeito um questionamento da viabilidade de reformular o sistema de escrita em um momento difícil como o que se vive. Implantado o acordo, os livros ficarão imediatamente obsoletos, o que representará, em última análise, mais gastos para todos. O governo tem distribuído livros para estudantes do fundamental e do médio e, certamente, terá de gastar mais para atualizar os compêndios. Acrescente-se o desconforto dos anos de transição, quando a ortografia antiga vai conviver com a moderna. É possível, também, que, no afã capitalista de proceder às mudanças, editoras acabem por reproduzir um sistema de escrita híbrido, a exemplo do que ocorreu, na década de 70, quando se operou a última reforma ortográfica por aqui.

O Brasil também é, infelizmente, um país de desletrados. Muito poucos conhecem razoavelmente nossa intrincada ortografia. O acordo sob análise não deselitiza o nosso sistema ortográfico e, nesse sentido, talvez mereça aprimoramento e não seja o momento de aplicá-lo, em nome da uniformidade lingüística de um universo em que o Brasil é esmagadora maioria. Quanto ao sistema de escrita, talvez o mais acertado seja envidar esforços no sentido de que ele se cristalize e não se sujeite a reformas periódicas, que, em última análise, confirmam a suspeição de que as leis no Brasil não pegam mesmo.

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Professor