Natal, capital do Rio Grande do Norte, é uma cidade de Primeiro Mundo. Essa afirmação, por si só, sem complemento, encerra uma série de deduções, está carregada de sentidos. Por exemplo, significa que, em termos de saúde, educação e segurança, atingimos níveis escandinavos. Ou seja, alcançamos um patamar no quesito qualidade de vida sonhado por todas as outras capitais do país, ou mesmo da América Latina.
Claro que qualquer cidadão do mundo, por mais alienado, discorda desta infeliz colocação. Só para se ter uma idéia, a Câmara Municipal local acaba de criar uma Comissão Especial para investigar o escândalo das dezenas de toneladas de medicamentos jogados ao lixo durante a administração passada, comprados faltando pouquíssimo tempo para vencer, armazenados em locais inadequados e adquiridos por meio de contratos no mínimo duvidosos, caracterizando, pelo menos, má gestão. Enquanto isso, constantemente falta remédio nos postos de saúde, as escolas são precárias e a violência aumenta a cada dia. O saneamento básico chega a apenas cerca de 30% das casas e os lençóis freáticos estão contaminados por excessivos níveis de nitrato, substância cancerígena. Certamente os suecos não se reconhecem nesta imagem.
Retornando à primeira frase, não seria surpresa se tivesse sido pronunciada por algum governante alucinado. Faz parte do jogo de cena. O problema todo é que ela foi dita por um jornal, o Diário de Natal, cuja obrigação com o público é aproximar-se o mais possível da verdade. A partir de agora será impraticável para o tablóide desmentir tal bobagem caso venha de algum político tresloucado – afinal, ele próprio já o confirmou.
Amáveis e hospitaleiros
Mas vamos aos fatos. Circula nas últimas semanas um anúncio na televisão potiguar justamente anunciando o absurdo comentado acima. Claro, sabemos todos que ludibriar é o principal objetivo da maioria dos comerciais, mas torna-se um crime confesso quando vindo de um periódico encarregado de transmitir uma visão crítica à sociedade.
‘Natal é uma cidade de Primeiro Mundo’, começa a propaganda enganosa. Como o cliente é um veículo informativo, logo espero pelos documentos, análises ou estatísticas chamados a comprovar tal fato. E vem o arremate: ‘… seu povo é generoso e hospitaleiro’. Obviamente, continuo a aguardar os números, pois me recuso a crer na passagem seguinte como sendo o principal argumento de sustentação do delírio. Eles não vêm, evidente, e eu quedo estarrecido diante da baixeza na associação primária de idéias.
Ora, um povo mais ou menos acolhedor não representa, como sabe qualquer recém-nascido, elemento suficiente para afirmar que uma cidade pertence ou não ao Primeiro Mundo, até porque esta opinião (trata-se de uma opinião, pois ainda não inventaram o simpaticômetro) não entra no cálculo. Significa ainda que espanhóis, ingleses, franceses, dinamarqueses, holandeses, norte-americanos, canadenses etc., todos moradores de países desenvolvidos, são amáveis e receptivos, enquanto sul-americanos (com exceção de Natal, claro), caribenhos, africanos etc., não, pois pertencem ao Terceiro Mundo, mundo subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento, tanto faz.
Assumindo a Grande Verdade
E o anúncio prossegue: ‘Um povo de Primeiro Mundo necessita de um jornal de Primeiro Mundo. Diário de Natal, agora em novo formato (tablóide)’. Meu Deus! Poucos néscios no planeta ainda não se deram conta de que o problema do jornalismo atual não está na forma, mas sim, no conteúdo. E, além disso, quais são os jornais mais importantes do Primeiro Mundo? The New York Times? Financial Times? Le Monde? Le Figaro? El País? Pois agora junta-se a eles também o Diário de Natal!
Os estudiosos da comunicação já alertam há tempos para a convergência e a indistinção cada vez mais crescente entre jornalismo, ficção e publicidade. A nova propaganda do Diário de Natal é emblemática neste sentido. Mas esse entrelaçamento, se antes era velado, dissimulado, encoberto, escondido, visível apenas a poucos iniciados, foi revelado pela gazeta natalense. Sem medo, sem receio de ser desmascarada, resolveu, pela primeira vez, sem subterfúgios, assumir de público a Grande Verdade.
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Jornalista, Natal, RN