A ferida aberta da multiprogramação em TV Digital supurou e se transformou numa guerra de informações.
Multiprogramação consiste na possibilidade de utilização de cada freqüência digital para a transmissão simultânea de quatro sinais diferentes. Nas plataformas analógicas, cada faixa de 6MHz (que é atribuída no ato de concessão da emissora) permite a transmissão de apenas um sinal. Esses mesmos 6MHz, nas plataformas digitais, permitem o tráfego de até quatro sinais diferentes – ou um sinal em HDTV (Alta-Definição, que ocupa muito espaço).
Na implantação do sistema, três anos atrás, o Ministério das Comunicações deixou a critério das emissoras comerciais transmitirem em HDTV ou em definição standard, mas acentuou que a multiprogramação não seria permitida às emissoras privadas, apenas ao sistema público. Isso foi confirmado na quinta-feira (26/2), pela Norma Geral para a Execução de Serviços de Televisão Pública Digital nº 01/2009, do ministério.
A norma destina-se a criar a figura do operador de rede para as emissoras públicas. Na sua redação, entretanto, estabelece também que a multiprogramação somente poderá ser realizada nos canais a que se refere o artigo 12 do Decreto no 5.820, de 29 de junho de 2006 – isto é, os consignados a órgãos e entidades integrantes dos poderes da União. Reitera oficialmente, portanto, a proibição para a utilização da multiprogramação por emissoras privadas, tal como havia sido anunciado bem antes pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa.
Polêmica esquecida
Na segunda-feira (2/3), pouco depois da publicação da portaria, o ministro afirmou, para serenar os ânimos das emissoras privadas, que o assunto seria objeto de estudos pelo governo. Na terça-feira (3), O Globo publicou nota de uma coluna na seção de Economia (com chamada na primeira página) afirmando que ‘o governo está elaborando as normas para liberar a multiprogramação da TV digital aberta’. No mesmo dia, a Abra, que representa a RedeTV! e a Band, distribuiu nota afirmando que ‘não faz sentido proibir a utilização de uma das características principais do sistema brasileiro de TV digital’.
Segundo O Globo, o ministro Hélio Costa e o presidente Lula devem se reunir para discutir o assunto. A questão, delicadíssima, envolve uma guerra de bastidores que se desenrola há anos. A autorização para a utilização da multiprogramação pelas emissoras privadas é vista por alguns setores como a concessão de três novos canais para cada canal existente. O Globo, para definir o sistema, exemplifica: ‘Vai possibilitar que seja exibida uma novela e um documentário, por exemplo, ao mesmo tempo por um canal aberto’.
Este é justamente o pior dos pesadelos para os setores que criticam o oligopólio das emissoras privadas no cenário da TV aberta brasileira. O outro lado, porém, tem sido pouco discutido. Com a liberação da multiprogramação para os canais consignados à União, o governo pretende colocar em sinal aberto as emissoras do Senado, da Câmara dos Deputados, assembléias estaduais e da Justiça, entre outros.
Para criar o operador de rede, que permite tal operação (numa analogia grosseira, é como ter um duto único por onde passem vários sinais), vai-se gastar R$ 100 milhões por ano, ao longo dos próximos 15 anos. Esse papel será exercido pela EBC (Empresa Brasil de Comunicação), conforme protocolo firmado em novembro do ano passado.
Com pouco mais de um ano de existência, a EBC consumiu mais de R$ 500 milhões dos cofres públicos. Fundiu as estruturas da TVE (Rio e Maranhão) e da Radiobrás, mas até agora não justificou com um frame todo esse dinheiro nem sequer apontou para uma conceituação aceitável do papel de uma televisão pública. Foi alvo de muita polêmica na sua criação, mas ficou esquecida depois disso, com a rapidez com que no Brasil se esquecem fatos e personagens.
Dilema desconfortável
O debate sobre a multiprogramação pelas emissoras privadas vem envolto, desde os seus primórdios, num sofisma. As emissoras sustentam que têm concessão para a utilização de 6MHz, não importa o que queiram fazer com ‘eles’. Na época em que as faixas foram consignadas, podiam fazer passar um canal. Hoje, podem fazer passar quatro. Setores que se opõem a essa utilização sustentam que a concessão não é para 6MHz, mas para um canal.
A primeira pergunta que surge é: o que as emissoras privadas fizeram com os canais que lhes foram concedidos? E a segunda pergunta tem que ser: o que a União fez com os canais que ela mesma se outorgou, e que são mantidos com o dinheiro público? Questões que caíram no esquecimento, como no Brasil caem no esquecimento, em uma pouco tempo como Renan Calheiros, Edmar Moreira, Agaciel Maia, Fernando Collor…
O dilema não é nem um pouco confortável, mas resume-se em determinar o que é pior, hoje, para a sociedade brasileira: quatro Globos ou uma EBC?
******
Jornalista