Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

“Desenhista é a minha identidade”

João Spacca de Oliveira diz que, por ser filho de projetista arquitetônico (João Batista) e de professora (Verônica Spacca), nunca lhe faltou papel e incentivo para desenhar. Nascido em São Paulo, em 1964, começou a trabalhar como ilustrador aos 15 anos na agência Young & Rubicam do Brasil, na época uma das maiores do mundo. Ficou quatro anos fazendo, principalmente, storyboards (sequência de quadros) para filmes, base importantíssima para suas histórias em quadrinhos, pois familiarizou-o com linguagem de cinema. “Fez-me acostumar, em qualquer projeto, a pensar no leitor, no espectador, na recepção da mensagem, em como torná-la mais clara e divertida”.

Spacca fez curso de desenho de comunicação e completou os estudos formando-se em comunicação visual, ambos em São Paulo. Em 1983, trocou a publicidade pelo desenho animado. Estagiou por cerca de um ano na produtora Briquet Filmes, animando os primeiros filmes do personagem Bond Boca, do produto de higiene bucal Cepacol, e desenhos para chocolates e sorvetes.

Em 1985, publicou no jornal Pasquim e ganhou concurso da Folha de S.Paulo para novos talentos. Herdou o quadrado de charge na página de opinião, até então feita por Claudius Ceccon e Paulo Caruso. Ficou até 92, alternando o espaço, dia sim, dia não, com o cartunista Glauco Villas Boas. Ilustrou por dois anos o suplemento infantil Folhinha. Colaborou com a revista Níquel Náusea por 28 números, de 1987 a 95, com cartuns e contos em quadrinhos. Ilustrou livros infantis e atuou como cantor-imitador de Cazuza (Agenor de Miranda Araújo Neto) no espetáculo Rosas Roubadas. Em 95, parou com charge. Em 2004, quando o projeto Santô e os Pais da Aviação foi aceito pela editora Companhia das Letras, Spacca achou o que diz ser o seu caminho. “Desde então, os quadrinhos têm sido a coisa mais envolvente, difícil e prazerosa que já fiz”.

Depois da entrevista a seguir, deu vontade de encontrar com Spacca num boteco para conversar mais e mais, muito mais.

Adaptações literárias ajudam na divulgação da HQ

Por que se tornou desenhista?

João Spacca de Oliveira – Não sei. Sou desenhista desde os quatro anos, o que me tornei foi desenhista profissional. Desenhista é a minha identidade, mais que ilustrador, cartunista ou quadrinhista. É uma forma de conhecer e de entender – eu pensava no Leonardo da Vinci, que usava o desenho como ferramenta para estudar ciências.

Como viver de quadrinhos e cartuns?

J.S.O. – Cada segmento tem sua receita de sobrevivência. Para cartum, tem de ser colaborador fixo de jornal, mas não há muitos. Com ilustração, é imprevisível, a gente fica esperando o trabalho aparecer. Quadrinho é minha aposta mais firme, nesse tipo de livro que faço, que também pode ser adotado em escolas. Com o tempo e livros publicados, a carreira vai ficando mais estável e já dá para viver.

Quais os prós e contras das adaptações literárias em quadrinhos?

J.S.O. – Não vejo nenhum contra, só quando não são bem feitas. Os prós são: demonstrar que a arte da HQ consegue chegar lá; dar conta da tarefa de traduzir uma obra literária; reintroduzir na memória coletiva um autor e obra meio esquecidos; ajudar na divulgação da HQ, pegando carona no prestígio da obra; possibilidade de pegar público que não leria HQ, mas que conhece a obra original; aprender, com a obra que se está adaptando, a escrever melhor, a imaginar histórias; e gerar um livro de HQ mais duradouro.

Quem completa a piada é o leitor

É possível ensinar a fazer charges, cartuns ou caricaturas?

J.S.O. – Ensinar, não sei se é possível, mas é possível aprender. No primeiro caso, não há método ou professor capaz de ensinar a qualquer pessoa, se ela não tiver jeito. Mas é possível aprender a fazer charges e cartuns. Eu aprendi, e me lembro do esforço consciente – é diferente de ser desenhista. Estudei os cartunistas [Arnaldo] Angeli, Henfil [Henrique Filho], Millôr Fernandes, Jaguar [Sérgio Jaguaribe], os Caruso. Talvez por isso tenho possibilidade de ser um professor razoável de cartum, porque sei traduzir meus processos em sistemas. A princípio, sei explicar. Se os outros entenderão é outra história.

O jornal diário é boa escola para o cartunista. É um emprego para a vida toda? Qual sua opinião sobre o trabalho do cartunista em jornal?

J.S.O. – Sim, para mim foi uma boa escola para me tornar chargista. Não me ensinou outra coisa. A certa altura, achei a charge uma limitação. Treinei num tipo de desenho que não me foi muito útil quando eu quis fazer coisas mais complicadas, como minhas HQs históricas. Por exemplo, numa charge, você pode fazer uma caravela qualquer bem caricata, botar uma cruz na vela, um Cabral enorme na proa e está feito. Mas numa HQ, no tipo de desenho que faço, apesar de caricato, é simulação do real: uma caravela tem de ser uma embarcação que pareça capaz de carregar muitos homens. As velas têm de estar recolhidas ou içadas, os marinheiros precisam fazer alguma coisa, e eu, que não entendo nada de marinhagem, tenho de pesquisar para dar a impressão que conheço, assistir a filmes. Se é bom emprego? Para uns poucos, sim. É profissão com pouquíssimos cargos disponíveis. Há outro aspecto de missão da charge, que é a produção de julgamentos sobre a realidade, mas essa função depende de quanto a imprensa é sincera. Há visões da realidade que não saem nos jornais, e duvido que uma charge consiga funcionar independente do que o jornalismo publica. Se há tendência em silenciar sobre certos assuntos, o chargista tende a se calar também, até porque ele não consegue criar piada a partir do que o público desconhece porque quem completa a piada ou sugestão é o leitor.

Diante da verdade, não há liberdade para quem se dispõe a aceitá-la

Ainda há espaço para imprensa alternativa no Brasil?

J.S.O. – Não adianta ter imprensa alternativa se não tiver pensamento alternativo. Vejo nos editoriais, nos porta-vozes do governo, nos abaixo-assinados da internet e no povo intelectualizado em geral uma opinião e uma agenda de prioridades muito semelhantes. Parece que todo mundo está de acordo a respeito do que condenar. Então não adianta ter veículos separados da tal grande mídia, se falarem a mesma língua dos oficiais.

Como vê as novas possibilidades de publicações: e-books, blogues, redes sociais? O jornal impresso está condenado?

J.S.O. – Não faço ideia. Só pego as novidades quando elas ficam tão fáceis e onipresentes que até eu tenho acesso. É curioso, o jornal impresso ainda mantém uma função cartorial, de publicação oficial dos fatos e declarações. Tem prestígio, e não sei como ainda tem, porque tanto o modelo econômico quanto o monopólio da informação se foram faz tempo. Não uso o jornal impresso nem para me informar, nem para formar opinião.

Nos seus álbuns de HQ, observamos o cuidado com a pesquisa. Vejo que seu D. João Cariocaé menos caricato que o visto no filme Carlota Joaquina. Até onde vai o compromisso do criador com a verdade histórica e/ou com possível criação ficcional?

J.S.O. – Sim, o D. João VI do Marco Nanini é deboche puro, um escárnio. Não é personagem dramático, é bufão. O nosso procura conciliar as várias facetas, não só comilão e vacilante, mas esperto à sua maneira, matreiro, que também faz os seus planos. Procuro construir uma personalidade de acordo com o que ela fez, com as situações que ela viveu. Além de chefe da nação portuguesa, era pai de família, filho amoroso, apegado a tradições que a Europa estava fazendo em pedacinhos. Não uso verdade com aspas. O que aconteceu, aconteceu. Acredito em realidade, tenha acontecido há dois mil anos ou anteontem. É trabalho de jornalista, de historiador e meu tentar descobrir o que e como aconteceu, não só por meio de documentos, mas analisando os vestígios, as consequências. Diante da verdade, não há liberdade para quem se dispõe honestamente a aceitá-la, mesmo que contrarie nossas simpatias e antipatias. A liberdade que me dou vem depois, na escolha dos meios de apresentar a história. Aqui, escolho o que melhor atenda às necessidades editoriais, o espaço que tenho, o conhecimento prévio do público, entre outros. Mas, mesmo aqui, me deixo guiar pela compreensão que eu venha a formar da história. Ou seja, por aquilo que me pareça ser mais próximo da verdade. Exemplo: se eu fizer uma história sobre a Guerra do Paraguai, não vou seguir nem a versão heroica dos militares antigos, nem a versão revisionista de cursinho da conspiração inglesa. Seguiria o terceiro caminho, representado pelo Francisco Doratiotto, sensato e honesto.

Ilustrador é o continuador do que se entende por arte

Os livros em quadrinhos são mais eficazes e podem substituir os livros tradicionais na educação de crianças e adultos?

J.S.O. – Não. A HQ não é mais eficaz do que a literatura. A literatura é uma grande arte plenamente desenvolvida e pode narrar tudo. Não temos que procurar meios eficazes para atingir os leitores: temos que fazer leitores à altura dos melhores livros.

Você desenvolveu o projeto Santos Dumont desde os seus 15 anos de idade. Como define os seus projetos? Partindo da admiração pelo personagem ou também faria um álbum focando a vida de um vilão?

J.S.O. – Poderia fazer um vilão, claro. Deixando claro que é um vilão, mas vilão mesmo a gente pensa em alguém com superpoderes, ou uma grande maldade pura. Não sei se temos gente assim por aqui. Os nossos malvados são fracotes, covardes, omissos. Do tipo que tiram da reta. Não são vilões, mas têm vilania. São vis. Um cara que tem estatura sobre-humana é Getúlio Vargas. Esse é especial, foi bem fdp, mas tem mais camadas. Ele tinha um tipo de determinação rara nos brasileiros.

Vê diferença entre o trabalho do ilustrador e do artista plástico?

J.S.O. – O artista plástico é espécie de filósofo que se expressa em objetos, narcisista e idiossincrático, que procura justificar sua atividade com olhares herméticos sobre a realidade, o homem e o mundo, olhares revestidos de uma sacralidade alimentada por um sistema do qual fazem parte o crítico, o marchand e o investidor. É uma espécie de autopsicanálise em público. É das atividades mais alienadas, afetadas, mais sem sentido que o homem já inventou. Todo o seu sentido depende do efeito hipnótico causado nas pessoas pelo jargão da crítica. Fora isso, é um imenso e infrutífero nada, mas um nada superespaçoso e voraz. Já o ilustrador é um artista sério, prestador de serviços, é artista por encomenda, que realiza algo com significado claro, que é útil a terceiros. Ele é o continuador do que sempre se entende por arte na história da arte, ou seja, arte aplicada: estátuas, catedrais, vasos, armaduras, entre outros, assim como os designers, cineastas, criadores de moda…

É na vida real que mora a alma de um povo

Quem o inspira? Por quê?

J.S.O. – Os mestres das HQs e das artes, os cineastas Steven Spielberg, John Huston, David Lean e outros. Porque me ensinam, por suas obras, a melhorar o que tento fazer.

O que há de pior na função de cartunista, caricaturista e chargista no Brasil?

J.S.O. – O Brasil.

Já tivemos casos de cartunistas serem agredidos e ameaçados de morte por causa de uma charge. Há limite na crítica do desenho de humor?

J.S.O. – Há limite em toda atividade. Nenhuma atividade humana tem direito à inatacabilidade. Por que o humor teria privilégio de atacar e não levar revide? É um iluminado, está sempre certo, sempre defendeu as boas causas? Claro que não. Até o nazismo foi propagado com charges antijudaicas. O que o chargista espera, que o atacado leigo reaja com um desenho feito com homens-palito? Se a charge é um ataque, o outro lado vai reagir com o que tem. Mas é claro que mandar capanga dar couro no chargista não é admissível. E o processo deve recair em quem autorizou a publicação. Se o diretor não quiser, que não publique. Se publicou, é porque endossou. O chargista deve estar pronto para receber críticas, dentro dos limites legais.

Vê diferenças entre o humor mineiro, paulista, carioca, gaúcho? A internet acabará com essa diversidade?

J.S.O. – Vejo, e nordestino: cearense, baiano… Quem não vê? Não acredito que a internet acabe com as diferenças. O sujeito continua em sua região todo dia nas ruas, no boteco, no mercado, falando e vivendo sua maneira de pensar. E é nessa vida real que mora a alma de um povo, de uma região, na história do lugar.

Sempre estou aprendendo um jeito de narrar ou de escrever

Num país de poucos leitores, observa com otimismo o mercado para histórias em quadrinhos nacionais?

J.S.O. – Vamos levando… Para as HQs nacionais, em geral, não sei. Há nichos, há o meu filão histórico, há o filão americano de autor (Bá e Moon), há o mercado de mão-de-obra brasileiro de quadrinhistas para produtos americanos. Tudo isso é HQ. Mais importante do que fazer HQ brasileira, é aprender a fazer HQ. Temos um défice histórico grande nesse setor – só nesse? Os argentinos estão uns cinquenta anos na nossa frente.

Do Zé Carioca (Walt Disney) à Arara Blu (Carlos Saldanha), o que mudou no “complexo de vira-lata do brasileiro”, para citar uma expressão do dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues?

J.S.O. – Em que sentido é complexo de vira-lata: inferioridade em relação aos Estados Unidos? Os EUA são um grande país e fonte de inúmeros ídolos e influências que o brasileiro venera. Até a crítica antiamericana é importada das universidades e imprensa americana. O antiamericanismo, atrelado a um julgamento de sua ação internacional, como se fossem os únicos ou piores imperialistas da história, é bobagem e injustiça. Walt Disney, Carl Barks e Will Eisner, Cecil B. D. Mille, Superman, Batman, O Poderoso Chefão, Spielberg, Humphrey Bogart, Os Simpsons… Fala sério. Certo está Ruy Castro, que fez o seu livro Saudades do Século XX todo centrado em figuras americanas da primeira metade do século passado.

Seu Santô foi adaptado para teatro de bonecos pelo Grupo Catibrum, de Belo Horizonte. Como foi essa experiência?

J.S.O. – Muito sensível, muito caprichada. O diretor Lelo Silva soube enxergar e extraiu um espetáculo maravilhoso do meu livro. Além disso, tecnicamente, foi muito mais viável realizar meu gibi em teatro, e obter um resultado mágico, do que teria sido se fosse fazer cinema, pois nossas realizações em cinema são, em geral, meio titubeantes, não temos carpintaria treinada, tarimbada para fazer cinema. De modo que, com o teatro de bonecos, com o mínimo se fez o máximo. Recebi como um presente. Eles também adaptaram D. João, que infelizmente não pude assistir ainda.

O que lê? Há o seu livro preferido?

J.S.O. – Estou pesquisando sobre os jesuítas, lendo cartas de Anchieta, Nóbrega e outros documentos conexos. Não tenho livro preferido. Sempre estou lendo por causa de algum projeto, ou para aprender um jeito de narrar ou de escrever. Ou então lendo algum autor que me ensinou alguma coisa muito valiosa.

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[Genin Guerra é caricaturista e cartunista do jornal O Trem Itabirano]