Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desinformação na mídia italiana

Durante quase todo o século 20, o Afeganistão foi um dos países mais ignorados pelo mundo. Em 1973 a monarquia absolutista que o governava foi substituída por uma ditadura filosoviética. Depois de alguns anos, para poder mantê-la a União Soviética o invadiu militarmente (21/12/1979). Nesse momento, o Afeganistão tornou-se o centro das atenções do mundo, não pela agressão que sofrera, mas pelas conseqüências imediatas que esta trouxe e não foram na área política ou militar, mas na esportiva, duas Olimpíadas viram-se sem a participação das maiores potências mundiais do esporte, cada uma por sua vez.

Na de Moscou em 1980, os Estados Unidos resolveram boicotá-la em protesto à invasão e na seguinte, em Los Angeles, foi a vez da União Soviética dar seu troco, noves fora, nada. O Afeganistão continuou invadido, as tropas soviéticas tentavam enfrentar as guerrilhas sem sucesso, até que, reconhecendo a derrota, retiraram-se em 1989, deixando além de milhares de mortos um país à deriva. Três anos depois, os islâmicos conseguiram derrubar o governo comunista; todavia, a guerra civil continuou: em 1996, as milícias integralistas dos talibãs (estudantes de religião) sunitas, liderados pelo mulá (doutor da lei corânica) Mohamed Omar, tomaram a capital e instalaram a shaira (lei do Alcorão).

Finalmente, foi proclamado em todo o país o Emirado Islâmico, tornando-se uma teocracia dominada pelos talibãs, onde quase tudo era proibido: música, esportes, televisão, rádio, até aos meninos de soltar pipa; as mulheres não podiam trabalhar nem ir à escola, eram obrigadas a usar a burca (roupa que as mantém cobertas, com uma viseira de tela para poderem enxergar) e são ‘tocadas’ pelos homens a golpes de vara. Mas tudo ficou ‘normal’ até 11 de setembro de 2001, quando do atentado às Torres Gêmeas em Nova York. O atentado foi assumido pelo grupo terrorista liderado por Osama bin Laden e este tem seu quartel general no Afeganistão. Menos de um mês depois o país foi invadido pelas tropas da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), numa operação mais ou menos ‘Procura-se bin Laden vivo ou morto’, voltando portanto às manchetes de todos os meios de comunicação. Todavia, os holofotes mudaram de lado em 2003, quando as tropas anglo-americanas invadiram o Iraque, voltando o Afeganistão ao esquecimento.

Ironias na imprensa

Em outubro, mesmo que discretamente o país retornou ao noticiário, pois no dia 9 foram realizadas as primeiras eleições livres de sua história, para escolher o presidente. O Corriere della Sera Magazine (7/10) publica o artigo ‘L’Afeghano d’ocidente’, de Constantino Muscau. Mais que tudo trata-se de um panegírico ao atual presidente e provável vencedor das eleições, Hamid Karzai. Ele inicialmente foi posto na presidência provisória pelas tropas da Otan, oito meses depois foi proclamado chefe de Estado interinamente pela ‘Loya Jirga’, que seria a Grande Assembléia tribal de todas as etnias e clãs afegãs. Representa o máximo poder consuetudinário do país, existe há exatos 300 anos e sua última reunião foi em 1964.

Mesmo assim, seus opositores o classificam como um fantoche ianque. O artigo fala de sua origem aristocrática, de seus estudos superiores no Paquistão e na França, sua preferência pela leitura de Charles Darwin e cita Tom Ford, que num inexplicável exagero o classifica como o homem mais elegante do planeta. Mas o artigo quase nada diz dos outros 17 candidatos, apresenta suas fotografias, alguns são chamados de senhores da guerra, outros de chefes tribais e além do nome, Massooda Jalal, nada diz da única mulher candidata.

O outro artigo (8/10) foi publicado no Il Vernerdi di Repubblica (revista inserida às sextas-feiras no jornal la Repubblica), é assinado por Guido Rampoldi, ‘Afghanistan: tu chiamale, se vuoi, elezioni’ (Afeganistão: se você quiser, chame-as de eleições). O autor ironiza as eleições, põe em dúvida que possam ser democráticas, pois serão manobradas pelos senhores da guerra, as mulheres votarão exclusivamente em quem os maridos mandarem; que existem dúvidas sobre a honestidade de Karzai e que essas primeiras eleições não representam de forma alguma uma vitória do Ocidente, pois as fraudes tiveram início na inscrição dos eleitores, que somaram 10,5 milhões, mas que não deveriam ser mais de 7 milhões, portanto muitos registraram-se mais de uma vez, e votarão também mais de uma vez.

Melhor do que nada

Não se entende onde este último número foi encontrado, pois no país houve somente um precário recenseamento em 1979, e jamais houve um censo eleitoral, pois não existiam eleitores. Também não diz que foi estabelecido um método para que as pessoas não pudessem votar mais que uma vez: ao depositar seu voto, passam-lhe no dedo uma tinta que será indelével por alguns dias. Segundo Guido, vencerá Hamid Kazai, o presidente imposto pelos americanos e até agora mantido por eles, mas essa preferência deve-se a um equívoco, pois muitos anciãos (ao que tudo indica, a expectativa de vida no país é de 45 anos), pouco acostumados à democracia, estão convencidos que ele seja um rei, aquela figura paterna e forte legitimada pelo céu. Equivoca-se o jornalista, dando a entender que as eleições no Afeganistão devam prender-se à cultura ocidental.

As eleições realizaram-se em clima de quase festa, sem incidentes de maior importância; contrariando Guido Rampoldi, a participação das mulheres fui muito ativa, a grande maioria indo às seções eleitorais com o rosto descoberto. O pleito foi validado pelos observadores das Nações Unidas e de algumas organizações não-governamentais. Os resultados ainda demorarão mais uma semana para serem conhecidos, os candidatos que se sabem derrotados protestam, como acontece em todas as democracias do mundo, onde o choro dos perdedores é livre.

Certo que não foram eleições perfeitas, mas as últimas presidenciais dos Estados Unidos, que têm tradição de voto livre há mais de dois séculos, também não foram. O que deve ser dito é que mais vale uma eleição ainda com imperfeições que a falta de eleições.

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Jornalista