‘Lula não merece isso. Quero muito bem a ele. Foi uma ofensa sem necessidade. Caetano não tinha que dizer aquilo. Vota em Lula se quiser, não precisa ofender nem procurar confusão.’ (Dona Canô, mãe de Caetano Veloso, em O Globo, 16/11/2009)
O cantor e compositor Caetano Veloso é uma das glórias do cancioneiro do Brasil. De resto, procedem de sua terra, a Bahia, muitas outras conquistas da cultura brasileira, notadamente da música e da literatura. Parodiando os versos de Castro Alves, outro baiano famoso, em O Livro e a América – ‘o século que viu Colombo, viu Gutenberg também’ –, o século que viu Amado, viu Caetano também.
É claro que todos os estados do Brasil, uns mais, outros menos, dão colorido inédito à cultura brasileira, soma de tantas diferenças, mas nenhum deles tem a forte presença que a Bahia sabe ter no plano nacional. Caetano Veloso tem muitos méritos desta presença.
Vai daí que qualquer frase de Caetano Veloso ganha dimensão nacional. (Já tratei do assunto, inclusive neste Observatório, em ‘Por que Caetano Veloso é tão citado?’). Instigado pela mídia, ele opina sobre tudo. Concordando ou não com os juízos que faz, convém, porém, discernir o que Caetano diz do que escreve e canta, já que seus pontos fortes e inegáveis são ser compositor e cantor. Em política, ele é meio atrapalhado, seja quando aprova, seja quando desaprova algo ou alguém.
Delito de opinião
Esta foi a vez de Lula. Chamar o presidente de analfabeto revelou um preconceito horroroso, além de notório erro de avaliação, pois o presidente não é analfabeto. E registre-se que Caetano tampouco é preconceituoso. É que quem muito fala dá bom dia a cavalo.
Analfabeto não é palavra para ser brandida como ofensa, mas como caridade, misericórdia, compreensão, reconhecimento de um estado que precisa ser alterado com urgência, pois como conquistar a cidadania e exercê-la sem saber ler e escrever?!
Registre-se também que devemos avaliar os políticos pelo que fazem, não pelo que dizem ou pelo modo refinado de suas escritas e falas. Devemos a criação de escolas e universidades a reis analfabetos, senão na língua nacional dos países sobre os quais reinavam, na língua de cultura dos tempos monárquicos em que viviam. O rei português Dom Dinis, lavrador e poeta, criou a Universidade de Coimbra com o documento em latim: Magna Charta Priveligiorum, algo como ‘Constituição de Privilégios’, seu primeiro estatuto. Assinou o que não leu, confiando nos áulicos. Supõe-se que os cinco primeiros reis portugueses tenham sido analfabetos em língua portuguesa.
A declaração ofensiva de Caetano Veloso encontrou o presidente Lula em outra fase, bem diferente daquela em que estava quando quis expulsar do país o correspondente do New York Times, Larry Rohter por delito de opinião.
Em vez de irritar-se, brincou e, na sequencia, usou a expressão latina sine qua non ao abrir os trabalhos do 9º Congresso de Iniciação Científica, semana passada, em São Paulo: ‘Estou falando sine qua non porque Caetano fala. E se ele fala, Lula também pode falar’.
Voz da experiência
O presidente Lula já disse que ler cansa, dando péssimo exemplo, sobretudo a milhões de pessoas que nada leem e se sentem autorizadas a ler menos ainda, mas esta vez ele virou o placar com uma bela ironia e um gesto de grandeza: se Caetano pode, o presidente também pode. Será que criou um paradigma?
De todo modo, reconheçamos o óbvio: quando você faz qualquer crítica a Lula ou a Caetano, certamente desagrada à maioria dos que aprovam o governo do primeiro e as canções do segundo. A falta de discernimento, entretanto, não está em quem fala ou escreve, mas em quem ouve ou lê. O craque faz uma jogada de cabeça de bagre e o torcedor é obrigado a aplaudir?
O presidente semelha o que foi a camada de ozônio na década de 1970. Tudo o que dizíamos ou fazíamos deveria ser precedido de uma rápida avaliação: prejudicava ou não a camada de ozônio?
Lembremos na balbúrdia os versos de Gilberto Gil, ex-ministro de Lula:
‘E quando escutar um samba-canção/ Assim como `eu preciso aprender a ser só´/ Reagir e ouvir o coração responder: eu preciso aprender a só ser’.
E que o presidente deixe de comparar-se a Fernando Henrique Cardoso, aliás. Dados os contextos que ambos viveram, os méritos de Lula para alfabetizar-se são maiores do que os de Fernando Henrique Cardoso para doutorar-se. Como ensina João Guimarães Rosa, ‘o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia’.
Na segunda-feira (16/11), coube à sabedoria de Dona Canô, mãe de Caetano, repor as coisas com a sensatez de quem já viveu mais, proferindo as palavras que aqui usei de epígrafe.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)