No final de 2002, o senador Antonio Carlos Magalhães, acompanhado de seu amigo João Di Gênio, adentrou o restaurante Gero, em São Paulo, e topou por acaso com o jornalista Juca Kfouri, a quem cumprimentou com um elogio: ‘Quando você dirigia a Playboy, a revista fez o melhor perfil que a imprensa brasileira publicou a meu respeito’.
A reportagem de 1993, quando ACM cumpria seu terceiro mandato como governador da Bahia, foi escrita pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, colaborador deste blog. ‘Lembra dele, senador?’, perguntou Juca. ‘Claro, muito bom profissional. Nunca me puxou o saco, nem me sacaneou’.
A reportagem ‘Deus e o Diabo na Terra do Acarajé’, um texto de 40 mil caracteres, ocupou nove páginas da edição 215 da revista de junho daquele ano. Durante duas semanas, o repórter ouviu no eixo Salvador-Rio-Brasília políticos, empresários, jornalistas, amigos apaixonados e inimigos mortais do homem que dividiu a política brasileira entre o bem e o mal, a malvadeza e a ternura. No texto, revivem personagens do presente, como Sarney, Geddel, Collor, Waldyr Pires, e do passado, como Brizola, Roberto Marinho, Figueiredo. E revela-se que ACM, atingido por um infarto quase fulminante em 1989, morreu três vezes na mesa de operações do Incor, onde padeceu uma cirurgia de nove horas, até ressuscitar milagrosamente.
O texto resgata o faro de repórter do jornalista ACM, apontado na época como a melhor fonte da política brasileira. ACM, a pedido do repórter, listou as sete virtudes capitais de um bom informante para jornalistas. Acabaria ele mesmo desrespeitando a regra nº 4, que reza: ‘Nunca colocar o repórter na pista errada’.
Dez anos depois, quando Cunha era editor de Política da sucursal da revista IstoÉ em Brasília, ACM disse ao repórter, em off, que havia mandado grampear seu desafeto Geddel Vieira Lima, hoje ministro da Integração Nacional. A Polícia Federal apurou que era mais do que uma travessura contra um inimigo – era um malvado megagrampo da polícia baiana que bisbilhotou os telefonemas de 700 pessoas em cinco estados.
Cunha quebrou o off, abrindo um debate ético na profissão, apontou ACM como mandante da operação, e o senador só não foi cassado porque a mão terna dos amigos Sarney e Lula garantiu o arquivamento do processo. Com autorização da Playboy, reproduzo o primoroso texto de Cunha. (Ricardo Noblat)
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Perfil – Antonio Carlos Magalhães
Luiz Cláudio Cunha # ‘Deus e o diabo na terra do acarajé’ – copyright Playboy, edição 215, Junho 1993
Anjo ou demônio? Amigo ou inimigo? Governo ou oposição? Bajulador ou contestador? Austero ou corrupto? Ditador ou democrata? Malvadeza ou ternura?
Há quatro décadas o país tenta definir os traços mais marcantes do baiano Antonio Carlos Peixoto de Magalhães, médico de formação, jornalista de profissão e político por devoção. Nas ladeiras estreitas e calorentas de Salvador ou nos gabinetes atapetados e refrigerados de Brasília, o perfil polêmico do governador (pela terceira vez) da Bahia ainda desperta ódio e paixão, provoca inveja e admiração, estimula adesões, cria temores – e sustenta uma discussão que parece interminável. Aos 65 anos, o mais agressivo político brasileiro sobreviveu a todas as tormentas do país desde o governo de JK, na década de 50. Agora, como líder de uma oposição inclemente ao governo Itamar Franco, já de olho na sucessão presidencial de 1994, atrai outra vez a fúria dos elementos. É a briga mais recente da aguerrida biografia de Antonio Carlos Magalhães – e brigar é o que ele sabe fazer melhor.
Eleito deputado federal em 1958, aos 28 anos, pela União Democrática Nacional, a hoje extinta UDN, indispôs-se com um dos principais caciques do partido, Carlos Lacerda, o governador do Estado da Guanabara a partir de 1960, e com o presidente Jânio Quadros, que chegou ao poder em 1961 com apoio udenista.
Brigou em seguida com o presidente João Goulart e conspirou para o golpe militar de 1964. Comprou briga, também, com as tradicionais lideranças políticas baianas, ao ganhar a prefeitura de Salvador e o governo do Estado apoiado nos comandantes militares. Trocou socos com deputados e tapas com general. Bateu-se pelo AI-5 e, depois, contra a linha-dura que, confrontando os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, queria manter o país nas trevas eternas da ditadura. Batalhou pelo general João Figueiredo, na sucessão do presidente Geisel, e contra Figueiredo, quando o Palácio do Planalto adotou em 1984 a candidatura Paulo Maluf.
Abriu baterias, no mesmo ano, contra o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Mattos, desestabilizando a base militar do malufismo e, na hora certa, botou o pé no estribo da Nova República. Trovejou no palanque das Diretas-Já e manobrou pelas indiretas no Colégio Eleitoral, como queria Tancredo Neves. Brigou contra a CPI da Corrupção, como ministro, e contra os corruptos, como governador. Brigou com a Constituinte que queria encurtar o mandato do presidente José Sarney, dando concessões de rádio e TV aos amigos do presidente. Brigou com a NEC do Brasil quando a empresa, fabricante de equipamentos eletrônicos, estava sob o controle do empresário Mário Garnero e se reconciliou com ela quando, num episódio controvertido, Garnero a perdeu para o amigo Roberto Marinho – o amigo de três décadas que repassou às suas emissoras de TV na Bahia a programação imbatível da Rede Globo (Garnero até hoje responsabiliza ACM pela perda da NEC). Brigou contra o primeiro ministério de má fama de Fernando Collor e submergiu, num silêncio eloqüente, no arrastão da CPI que varreu a caterva da Dinda do poder. Brigou com o governador fluminense Leonel Brizola, em defesa do turismo da Bahia, e com o prefeito carioca César Maia, para proteger o Carnaval de Salvador. Brigou contra Itamar vice, e vai brigar ainda mais contra Itamar presidente.
Com tanta briga, Antonio Carlos Magalhães fez amigos, ganhou certamente muito mais inimigos, definiu um estilo e consolidou uma marca: ACM é hoje a sigla política mais longeva do país, após a extinção do PCB, o septuagenário Partido Comunista Brasileiro. ‘O importante, na política, é dizer não’, ensina ACM, que garante não guardar ódio de seus inimigos: ‘Quem odeia é escravo de seu ódio, e por isso muitos de meus inimigos são meus escravos.’ Nessa multidão ele inclui, com certeza, o senador Jutahy Magalhães (PMDB-BA), que não lhe perdoa a ingratidão com antigos amigos. ‘ACM é como pombo’, compara o senador. ‘No chão, ele come na mão da gente. No alto, caga na cabeça da gente.’
Ele comeu na mão do pai de Jutahy, o ex-governador Juracy Magalhães, que abençoou seu ingresso na política pela legenda da UDN baiana. E agora está sujando a cabeça do filho do senador, o ministro Jutahy Jr., da Ação Social, que ACM acusa de repassar verbas federais a prefeitos amigos em fim de mandato. ‘Não existe ninguém mais gentil do que ACM quando ele quer agradar’, cutuca Jutahy pai. ‘Ele sabia que meu pai adorava os netos e vivia dando presentes ao Jutahyzinho.’. ACM rebate: ‘Esse menino, o ministro, me beijava mais do que meu filho, o Luiz Eduardo. Só Freud explica…’
‘Não tenho medo do apito do guarda noturno’
Outro notório desafeto, o deputado federal e ex-governador Waldyr Pires, acusa: ‘Antonio Carlos governa com o chicote numa mão e a bolsa de dinheiro na outra. Se houvesse uma terceira, seria a da bajulação.’ Mesmo a oposição, porém, reconhece que nenhum líder civil do golpe militar de 1964, à exceção talvez de Carlos Lacerda, confrontou com tanta dureza os militares como ACM. Em 1965, deputado federal e presidente da Aliança Renovadora Nacional (Arena) baiana, ele trombou com o general João Costa, comandante da 4ª Região Militar, que pressionava a Câmara de Vereadores de Salvador. Num encontro no Palácio da Aclamação, diante do então governador Lomanto Jr., o general entrou ríspido na conversa: ‘Veja como você vai falar!…’, cortou ACM. No elevador privativo, estreito para tanta autoridade, o general levantou o dedo na sua cara e ACM explodiu: vergou o dedo com a mão direita e, com a esquerda, arrancou o quepe do general num tapa insubordinado. No Natal de 1968, poucos dias após a edição do AI-5, quando o governador Luís Viana Filho sofria pressão da linha dura do regime militar, o atrevido Antonio Carlos avisou num discurso na prefeitura de Salvador: ‘Não tenho medo do apito do guarda-noturno. Aqui não tem ladrão.’
Ele dizia não ter medo, também, do Serviço Nacional de Informações, o temido SNI. Em 1972, o general Carlos Alberto Fontoura, chefe do organismo, pediu explicações por escrito sobre um encontro com o cassado Juscelino Kubitschek no restaurante do Country Club, no Rio. ACM respondeu, confirmando e anunciando que ele e o ex-presidente haviam combinado um jantar para a semana seguinte: ‘Jantar este para o qual o sr. está convidado, general’, provocou o então governador da Bahia. O general não compareceu, mas reagiu com um telegrama ambíguo mostrando que o buraco era mais em cima: ‘Outra atitude não poderia esperar de V. Sa. o Sr. Presidente da República, general Emílio Garrastazú Médici. Assinado: Carlos Alberto Fontoura.’. Em 1979, contra as recomendações do SNI e seu chefe, general Octávio Medeiros, ACM cedeu o Centro de Convenções de Salvador para que a União Nacional dos Estudantes (UNE) fizesse seu primeiro congresso fora da clandestinidade.
‘Fui ao enterro dele e irei ao seu’
No caso de JK, o chefe do SNI se mostrou muito mal informado. Juscelino era velho amigo do pai de ACM, e este se transformou num ‘embaixador’ informal da Bahia junto ao presidente da República, quando se elegeu deputado federal, em 1958. Integrante da ala ‘chapa branca’ da UDN, assim chamada porque fazia uma oposição moderada ao Partido Social Democrata (PSD) no poder, ACM passou a ser conhecido como ‘despertador de JK’: ligava todo dia às 7 horas para longas conversas com o presidente. Sua amizade o fez mensageiro da notícia de sua cassação, em junho de 1964. No exílio, JK lhe mandava cartas afetuosas, que ACM guarda com emoção e orgulho. No dia em que JK morreu, em 1976, enquanto o Planalto hesitava em decretar luto oficial, ACM ligou para o general Golbery, o estrategista-mor do regime, para avisar que iria ao enterro do amigo. Dias depois, outro chefe do SNI, o futuro presidente João Figueiredo, ainda mais atrevido, ousou interpelá-lo. ‘Fui ao enterro dele e irei ao seu’, respondeu ACM.
Nos anos de chumbo da era Médici (1969-1974), o clima sufocante da ditadura esmagava qualquer contestação. A repressão militar dizimava os dissidentes de esquerda. Não era nada prudente dar um emprego a eles. Apesar disso, a empresa que ganhou a concorrência da prefeitura de Salvador para construir o Viaduto dos Engenheiros, na gestão de ACM, tinha como diretor uma figura maldita para o regime: o ex-deputado Rubens Paiva, que meses depois seria ‘desaparecido’ pela repressão. No auge do fechamento político, ACM era capaz de dizer que o AI-5 ‘não fazia mal a ninguém’, mas mostrava seu pragmatismo aos amigos mais próximos: ‘Se este país virar comunista, um dia, serei o maior líder de esquerda do Brasil.’
O escritor Jorge Amado, um marxista, engoliu em seco quando da segunda indicação biônica de ACM para governador, em 1979, e lhe telegrafou de Paris: ‘Sou contra você, mas não sou burro.’ Mesmo quem era contra, mas não era burro, reconhecia que a estréia de ACM na administração mostrara que ele não era competente apenas na tribuna parlamentar. Prefeito biônico de Salvador aos 40 anos, ACM conseguiu que o Planalto mudasse a lei para antecipar em dois meses sua posse – assumiria, assim, dias antes que seu protetor, o presidente Humberto de Alencar Castello Branco, passasse o poder ao sucessor, marechal Arthur da Costa e Silva, seu inimigo. Com isso, ACM pôde chegar à prefeitura com os cofres cheios, em 1967, preparado para enfrentar a dieta de verbas imposta por Brasília. E conseguiu, em três anos, revolucionar Salvador.
A cidade de traçado antigo, encarapitada em morros de ruas estreitas, tinha um trânsito caótico e ladeiras tão íngremes que os ônibus com freqüência deslizavam de ré. Uma delas ganhou, por isso, o nome de Quebra-Bunda. ACM aproveitou o traçado dos rios e córregos que cortavam a cidade e abriu seis grandes ‘avenidas de vale’, interligadas por viadutos que fazem o tráfego fluir sem nenhuma preguiça ou susto. A gestão de ACM na prefeitura tornou-o candidato natural a governador, na eleição indireta de 1970. No governo Médici, quando o partido situacionista, a Arena, era sinônimo de ditadura, ACM, embora arenista, era um biônico popular. Levou a luz da hidrelétrica de Paulo Afonso para a capital, tirou a burocracia do centro histórico e a levou para o moderno Centro Administrativo, pavimentou estradas e livrou a Bahia da dependência do cacau, do qual o Estado tirava nada menos de 60% de sua renda. Surgiu o Centro Industrial de Aratu e, com a força de Médici no Planalto e de Geisel na Petrobrás, o Pólo Petroquímico de Camaçari. Indicado para um segundo governo biônico, em 1978, abriu uma nova linha-tronco a partir de Paulo Afonso, levando energia para a esquecida região do Vale do São Francisco, o interior mais pobre do Estado.
Entre uma sucessão e outra, ACM desafiou lideranças e atiçou ressentimentos, convencido de sua própria força. Desprezando aliados de outras campanhas, ungiu solitário o herdeiro Clériston de Andrade, presidente do Banco do Estado da Bahia, para sucede-lo na primeira eleição pelo voto direto, em 1982. O candidato morreu um mês e meio antes da eleição, na queda de um helicóptero. ACM, com esse episódio, parecia ter sucumbido na política, mas ressuscitou ao lançar para governador o nome de um político obscuro, dispensando acintosamente o apoio dos líderes no Estado. Contra todas as evidências, o deputado João Durval, secretário estadual de Saneamento, elegeu-se governador com 580 000 votos de vantagem sobre o candidato do PMDB, Roberto Santos. Durval era um enigma político e ACM sabia disso: ‘Elegi um poste’, reconhece hoje o criador, renegando a criatura, agora mais um adversário seu na arena política baiana.
O quilômetro que tinha 700 metros
À estrondosa vitória de 1982 seguiu-se a atordoante derrota de 1986, a maior da carreira de ACM. Os inimigos se juntaram e massacraram o então poderoso ministro das Comunicações, derrotando o seu candidato, Josaphat Marinho, e levando ao poder Waldyr Pires, do PMDB, com uma humilhante vantagem de 1,5 milhão de votos. ACM, às vésperas da eleição, chegou a brigar com o Ibope, duvidando da tragédia iminente. ‘Foi o nosso maior acerto – 32% de diferença’, rememora o diretor do Ibope, Carlos Augusto Montenegro. ‘Acertamos na bucha. Depois dessa, Antonio Carlos passou a respeitar as pesquisas.’ ACM só não respeitou o governador eleito, que passou a viver à míngua de recursos federais. ‘As verbas foram bloqueadas em Brasília pelo ACM, que dizia que a Bahia, no meu governo, não teria nem pão nem água’, lembra Waldyr, contando que o presidente Sarney chegou a cometer a deselegância de visitar o Estado sem avisar o governador. O próprio Sarney admitiu a um amigo: ‘Eu não gostaria de ter um inimigo como ACM.’
O que ninguém previa, nem mesmo o PMDB, é que o sucesso de 1986 se transformaria em fiasco, dois anos depois: Waldyr Pires abandonou o governo para ser o vice de Ulysses na chapa do partido na eleição presidencial de 1989. O eleitor sentiu-se logrado e o governo caiu nas mãos do vice, Nilo Coelho, que se transformaria no alvo preferencial de ACM na sua campanha anticorrupção para voltar ao governo da Bahia pela terceira vez – agora, ao contrário das anteriores, purificado pelas urnas. Acusando Nilo Coelho de ter comprado fazendas, uma fábrica de cerveja, uma revendedora de automóveis e uma emissora de TV de 6 milhões de dólares após a saída de Waldyr Pires, ACM batia duro: denunciou que Nilo puxara 200 quilômetros de rede elétrica para dentro de suas fazendas e inventara o quilômetro de 700 metros. ‘Os outros 300 eram a comissão’, ironiza. ‘Tive que restabelecer o sistema métrico na Bahia.’
OAS ou ‘Obrigado, Amigo Sogro’
É pelo flanco da corrupção que os adversários tentam alvejar ACM, aparentemente sem muita pontaria. Como é que um político, só com o salário de ministro ou de governador, pôde formar o maior império de comunicação da Bahia?, questionam os inimigos de ACM. Nada se prova, até porque nenhuma dessas empresas está sem seu nome. O jornal Correio da Bahia, o terceiro mais vendido no Estado, com 20 000 exemplares diários, está em nome do outro filho, ACM Júnior. As emissoras no interior do Estado estão em nome de ‘pessoas amigas’, como as apresenta o próprio ACM. E a TV Bahia, que capta o sinal da Globo há cinco anos graças ao link direto entre ele e Roberto Marinho, é ou não é de ACM? ‘É e não é. É dos meus filhos. Eles é que usufruem.’
Os adversários batem também, por tabela, numa sigla subsidiária: a OAS (Olivieri, Araújo e Suárez), a segunda maior empreiteira do país, logo atrás da C.R. Almeida, com 20 000 funcionários, 100 canteiros de obras plantados no país e faturamento de 1,2 bilhão de dólares. Quando o dono da OAS, Cear Matta Pires, se casou com Teresa Helena, filha de ACM, a sigla ganhou uma tradução venenosa: ‘Obrigado, Amigo Sogro’. No seu primeiro governo, nenhuma obra foi contratada. No atual, alguns serviços foram ganhos pela OAS, porque atenderam ao preço mínimo, conforme exigência de ACM. A principal obra do Estado, contudo – a ‘Linha Verde’, estrada de 142 quilômetros unindo a Sergipe o litoral norte baiano, ao custo de 53 milhões de dólares – foi ganha pela maior concorrente da OAS no Estado, a Odebrecht.
A cobrança é implacável porque ACM, sempre que pode, deixa clara sua antipatia pela chamada ‘república das empreiteiras’. A um empresário que queria saber as razões dessa antipatia, ACM explicou: ‘Quando vocês cedem uma única vez e pagam comissão a um político corrupto, colocam sob suspeição todas as outras atividades da empresa, mesmo as mais honestas.’ Foi a ele que alguns empreiteiros recorreram, em 1991, quando se assustaram com a gula inesperada de personagens muito próximas ao presidente Fernando Collor de Mello. A comissão de praxe paga pelas empreiteiras tinha saltado de 14% para 20% ou 25%. ACM começou a perceber, então, o tamanho da influência de PC Farias sobre o governo, mas, segundo diz hoje, não avaliou bem o poder do tesoureiro sobre o próprio presidente – embora já existissem evidências dela. Ainda na fase de campanha, quando Collor atacava Sarney e ele era ministro das Comunicações, ACM foi chamado pelo candidato do PRN para uma conversa sigilosa, no Lago Norte de Brasília. Mas, em vez da Casa da Dinda, o encontro aconteceu na residência ao lado, sob o testemunho solitário do insinuante dono da casa – PC Farias.
Na fase de montagem do governo Collor, o ardor collorido do cacique baiano começou a desbotar quando o presidente eleito lhe anunciou, entusiasmado, o nome do futuro ministro da Justiça, Bernardo Cabral. ‘É o homem da Constituinte, o homem que Ulysses queria’, festejava Collor. ACM diz que tentou soprar o nome do médico Adib Jatene para integrar a equipe, mas desistiu ao saber que os alquimistas do Bolo de Noiva, o anexo do Itamaraty onde se articulava a estrutura do novo governo, tinham cravado Luís Romero Farias – irmão de PC – como secretário-geral da Saúde, antes mesmo da escolha do futuro ministro daquela pasta. No segundo semestre de 1991, como quem dá a senha, ACM começou a dar entrevistas em Salvador denunciando a roubalheira que tomava vulto sob o manto do governo Collor. ‘Rouba-se muito e pune-se pouco’, esbravejava.
Mas ele mesmo é cobrado, semanalmente, por sua forçada convivência com a malfalada classe dos empreiteiros. Sábado e domingo ele descansa com a família na casa do genro Matta Pires, erguida num terreno que ACM tem na praia da Penha em Mar Grande, na Ilha de Itaparica. É o encontro de rotina do genro e do sogro, ele garante, nunca do empreiteiro e do governador. ‘Mas ninguém acredita’, lamenta-se ACM, com ar resignado. Passageiro freqüente do jatinho Citation azul e branco da EBTA, a empresa de táxi-aéreo da OAS, ACM procura desfazer qualquer insinuação ou constrangimento ético: ‘Ela teve o melhor preço numa licitação pública’, argumenta. ‘E a fatura é paga através de publicidade na TV e no jornal de minha família. Acaba saindo bem mais barato para o Estado.’
Anos atrás, acusado de corrupção pelo deputado federal Elquisson Soares, do PMDB baiano, ACM o desafiou a comparar as declarações de renda de ambos. Exibiu a sua, o deputado não. ‘A Receita Federal foi investigar e descobriu que ele não declarava imposto de renda havia dois anos’, conta. Na CPI da NEC, na qual era acusado de infernizar a vida do empresário Mário Garnero para forçar a entrega da empresa ao amigo Roberto Marinho, autorizou por fax o relator Luiz Carlos Santos, deputado do PMDB paulista ligado a Orestes Quércia, a quebrar seu sigilo bancário. ‘Mas, não sei por que, o deputado engavetou meu fax’, diz ACM. Atento aos detalhes, recebeu um dia um pedido de audiência do bicheiro carioca Castor de Andrade, interessado em abrir uma indústria pesqueira. Sem saber direito que bicho ia dar, deu uma ordem inusitada à secretária: ‘Manda ele entrar, mas deixe a porta aberta…’
A porta de sua vida privada e familiar, contudo, ele nunca abre. Nem permite que batam nela. Nenhum de seus parentes, afirma, tem a carteira profissional assinada pelo Estado. Apesar disso, a oposição bate implacavelmente numa tragédia pessoal de ACM. A cada eleição, uma história antiga, o caso Juca Valente, é exumada com frieza de legista. Em janeiro de 1975, o primeiro marido de Teresa Helena, José Fernando Marques dos Reis Valente, o Juca Valente, de 27 anos, teve uma discussão feia com a mulher. Horas depois, foi encontrado morto com um tiro na cabeça, num caso definido oficialmente como suicídio. Apesar disso, o episódio passou a ser uma assombração política sazonal para ACM. A mãe de Juca, Maria Celina, está convencida de que o filho foi assassinado por haver desafiado a ira do sogro poderoso. Por duas vezes, em 1975 e 1988, ela tentou acionar a Justiça, mas em ambas o Ministério Público rejeitou o pedido, alegando falta de provas. ‘Isso é uma indignidade, que não respeita nem mesmo a dor pessoal de minha família e que a oposição insiste em explorar, da maneira mais vil’, revolta-se Antonio Carlos, quando o caso é mencionado.
Na Bahia, vale a pena ser assaltado
Na eleição de 1990, Juca Valente ressuscitou mais uma vez. Nessa campanha de 10 milhões de dólares, um item indispensável no palanque high-tech de ACM era o telefone, pelo qual tomava conhecimento do tom empregado pela oposição no horário da propaganda política. E foi pelo telefone que ele soube, antes de fazer seu discurso num comício na cidade de Itapetinga, a 600 quilômetros de Salvador, que a campanha do ex-governador Roberto Santos, seu adversário direto, tocava mais uma vez no episódio Juca Valente. ACM desceu do palanque, sem falar aos eleitores, foi para o aeroporto, pegou o jatinho, voltou para a capital, gravou sua resposta e sua revolta no programa de televisão e retornou, no mesmo dia, para o interior.
Apesar da insistência com que é trazida à tona, a história da morte do genro ainda é capaz de produzir nele um misto de revolta e emoção, que o deixa com os olhos avermelhados. Mas nada se compara à dor causada pelo suicídio de sua filha caçula, Ana Lúcia, que morreu em novembro de 1986, aos 28 anos (poucos dias, aliás, após a derrota por 1,5 milhão de votos para Waldyr Pires). No cemitério, o choro incontido mostrou que nada fragilizou tanto o coração de ACM como a morte de Ana Lúcia, tida como a predileta entre seus quatro filhos.
Com marcas tão fundas em sua vida pessoal, Antonio Carlos não admite que se cruze a fronteira doméstica em nome dos interesses – maiores ou menores – da política. Na campanha de 1990, apareceu um certo dia em seu QG eleitoral uma loira vistosa, acompanhada de um garoto e de um advogado esperto. O rábula queria oferecer o depoimento da mulher, no horário político, acusando a paternidade irresponsável de um poderoso adversário político. Era a versão baiana de Miriam Cordeiro, a ex-namorada de Luiz Inácio Lula da Silva que o torpedeou na campanha presidencial de 1989. ACM conta que, enojado, mandou expulsar o trio de seu comitê: ‘Política não se mistura com vida privada’, advertiu.
Duro com gente de fora, o governador baiano é implacável com sua própria equipe. Quando o telefone toca, às 7 horas da manhã, o secretário premiado já sabe que é ele, ligando após a leitura dos jornais. Ele tem obsessão por telefone, o primeiro instrumento que pega de manhã cedo e o último que larga, já de madrugada. Com ele faz uma ronda, via DDD, pelos principais gabinetes de políticos e empresários e pelas redações dos principais jornais e revistas do país (leia quadro no final da reportagem). Dono de uma memória fotográfica, que anota nomes e datas com precisão de relojoeiro, ACM registra na cabeça mais de 300 telefones. Não gosta de reunião coletiva de secretariado e prefere dar espaço à sua equipe, mas sempre marcando sob pressão. Segue um mandamento de Metternich, o conservador chanceler austríaco que arrumou a Europa após a confusão das Guerras Napoleônicas, no início do século XIX: ‘A liberdade é atributo da ordem.’ Traduzindo: vacilou, dançou.
Demitiu o secretário da Segurança quando, no dia 15 de janeiro de 1992, quinze turistas argentinos foram assaltados em Salvador. Recebeu o grupo em palácio, indenizou cada um com 1 000 dólares, pagou o hotel e os levou a passear pela cidade. O embaixador argentino em Brasília, agradecido, foi a Salvador para lhe entregar uma condecoração do país, o jornal Clarín de Buenos Aires festejou em editorial, dizendo que ‘vale a pena ser assaltado na Bahia’, e o governador acabou sendo recebido, por mais de uma hora, por um encantado presidente Carlos Menem.
No ranking da preferência popular, ACM disputa palmo a palmo com o cearense Ciro Gomes o título de melhor governador do país, afirma Carlos Augusto Montenegro, o diretor do Ibope. ‘ACM é um anjo para a opinião pública e um demônio para os políticos’, supõe Montenegro. Para uns e para outros, o veterano cacique aparece sempre impecavelmente trajado, em geral de terno e gravata, indiferente ao sol implacável da Bahia. Gosta de gravata listrada, especialmente com o azul, vermelho e branco da bandeira baiana, mas não suporta marrom. Não usa e não gosta de receber gente vestida com esta cor. É uma de suas raras superstições – como a preocupação de nunca ter 13 convidados à mesa generosa da ala privada do Palácio de Ondina, uma antiga casa de estilo colonial debruçada sobre o azul hipnótico do mar de Salvador.
Existem sempre convidados compartilhando o almoço ou jantar com ele e a mulher, dona Arlete. ACM passa ao largo dos pratos tradicionais da aromática cozinha baiana. Limita-se, hoje, a uma dieta de bifes grelhados ou carne branca com acompanhamento de legumes. Seu peso atual, 93 quilos, já dois pontos acima do recomendável, mas é difícil imaginar ACM sem aquela rotunda barriga que lhe dá uma silhueta de pai-de-santo ou de um coronel da política nordestina. E os devotos mais próximos sabem que, contrariando as ordens médicas, ele não resiste ao prazer proibido de duas ou três ‘punhetinhas’ após as refeições. Calma! ‘Punhetinha’ é o nome popular do ‘bolinho de estudante’, sobremesa que mistura tapioca, açúcar e canela e que faz Antonio Carlos se derramar de ternura. Marca registrada da baianidade inventada por Dorival Caymmi, os seus cabelos brancos combinam com o bigodinho ralo e estão sempre penteados para trás. Profissional do corpo-a-corpo na política, ACM só não gosta que lhe perturbem a ordem impecável dos cabelos. Nas campanhas eleitorais, além do telefone, existe sempre uma assessora próxima com um pote de gel e um pente para remediar um afago mais entusiástico ou uma inesperada corrente de ar.
Trabalhar com o governador da tórrida Bahia é, literalmente, uma gelada. Seu gabinete em Ondina não tem janelas e, além das estantes cheias de livros até o teto, exibe com destaque dois poderosos aparelhos de ar condicionado que dão a ACM e seus visitantes a sensação de que a capital da tropicália resvalou para algum ponto da gélida Patagônia: a temperatura ambiente não sai de 19 graus, enquanto do lado de fora o termômetro marca, como de hábito, mais de 32 graus. Atravessar aquela porta produz nos incautos um verdadeiro choque térmico.
‘Eu rezei, mas não me confessei’
Católico, devoto de Santo Antônio, ACM tem Ogum como seu orixá, o santo guerreiro do ferro e da guerra, cujos ‘filhos’ são impetuosos, autoritários, desconfiados – como o próprio ACM. Ele diz que não liga para isso, mas a lenda fala mais alto. Em abril de 1988, o mais famoso pai-de-santo de Brasília, Pai Paiva, sacrificou um boi, quatro carneiros e oito galinhas-d’angola em oferenda a Xangô, o orixá da justiça. Descobriu-se que o boi vivo tinha sido ofertado por um ministro, Prisco Viana, da Habitação e do PMDB. Ministro baiano em terreiro só podia ser ‘despacho de umbanda’ – e a ameaça acabou chegando, meio atravessada, ao terreiro de outro ministro e rival baiano, o desconfiado Antonio Carlos Magalhães, da Comunicações e do PFL.
Coincidência ou não, cinco meses depois um misterioso incêndio destruiu em menos de uma hora os seis andares do Ministério da Habitação, na W-3 Norte em Brasília. Só a garagem, no subsolo, ficou intacta. Queimou tudo, especialmente o arquivo pessoal de 25 anos de vida partidária de Prisco, incluindo fichas de eleitores, registros de conversas e anotações sobre episódios da política brasileira. Especialistas do candomblé dizem que os fatos estão relacionados, mas isto tudo pode ser apenas mais uma lenda baiana. ACM reagiu com uma gargalhada, quando ouviu a história de Playboy: ‘Engraçadíssimo, nunca tinha ouvido falar nisso.’.
Quando se trata de ACM, acredita-se em lendas e duvida-se de fatos. Em fevereiro de 1989, ele sofreu um infarto violento na sua casa de Itaparica e sobreviveu por milagre. Na madrugada de sábado para domingo, ele via na TV o massacre de Mike Tyson sobre Frank Bruno, pelo título mundial dos pesos-pesados. O soco fatal do campeão pareceu atingir ACM em cheio: uma cólica fulminante lhe tirou o fôlego. Ele ainda viu Bruno cair e, minutos depois, era a sua vez de tombar no sofá. Atravessou a madrugada com a ajuda de comprimidos. Levado para o Hospital Português de Salvador, escapou mais uma vez, e por pouco, da morte. A cineangiocoronariografia já estava pela metade quando inesperadamente a máquina quebrou, interrompendo o exame. ‘Se tivesse continuado, o coração teria explodido, pois a região infartada estava muito fragilizada pela violência do infarto’, avalia ACM.
Essa ameaça só foi percebida ao ser levado de avião para o Instituto do Coração, em São Paulo. Estava tão debilitado que teve que aguardar seis semanas até enfrentar o bisturi. Nesse meio tempo não deixou de continuar bem informado. Era mantido longe do telefone, mas isso não evitava que as notícias de primeira mão chegassem até ele. No leito do Incor, ACM foi a primeira pessoa, fora do círculo familiar, que soube que o coração do octogenário Roberto Marinho também tinha sobressaltos, só que de outra natureza. Protegido pelo sigilo hospitalar, o dono da Rede Globo confessou ao amigo que estava apaixonado por Lilly de Carvalho, a ponto de se submeter a um novo casamento. Quando a hora da operação finalmente chegou, carregada dos riscos que o médico Antonio Carlos bem podia avaliar, ele teve um derradeiro encontro com seu maior apoio espiritual – o cardeal do Rio de Janeiro, Eugênio Salles, um amigo de quase 30 anos. A sós, rezaram juntos no quarto. ‘Mas não me confessei’, avisa ACM.
E lá foi ACM, com o traseiro de fora
Passou nove horas e quarenta minutos na mesa de operações do Incor, em São Paulo, numa das mais difíceis cirurgias da carreira do experiente Adib Jatene, que já realizou mais de 20 000 operações desse tipo: três vezes o coração parou e ele, tecnicamente, morreu. Reanimado por equipamentos sofisticados, o músculo voltou a pulsar e ACM saiu dali com duas pontes de safena, duas pontes mamárias, um pedaço de pericárdio bovino e uma membrana de teflon implantados para reconstituir 20% do ventrículo esquerdo. A carga de anestesia empregada para uma cirurgia tão prolongada e complexa acabou alterando o seu agudo senso de realidade. Alguns dias após a circurgia, ACM despertou de madrugada num estado de franco delírio. Com a memória bloqueada por tanta química, imaginou estar num hotel. Levantou-se da cama, saiu do quarto, atravessou o corredor, pegou o elevador e desceu, sem despertar a atenção de nenhum médico ou enfermeira. Foi descoberto perambulando, desorientado, no estacionamento do hospital, vestindo apenas aquela ridícula túnica de paciente, amarrada nas costas por um laço precário que deixa o traseiro exposto ao vento.
Apesar disso, na época um deputado do PDT baiano estava convencido de que tudo não passara de uma armação ilimitada de ACM: ‘Isso é coisa do SNI’, afirmou. ‘Ninguém viu a cicatriz.’ Mas ACM não perde tempo com subalternos. Ele gosta mesmo é de se nivelar aos maiores. No caso do PDT, bate de frente com o líder máximo do partido, Leonel Brizola, com quem já brigava no início dos anos 60, quando ambos freqüentavam o plenário da Câmara dos Deputados. ‘Brizola é um ingrato, deve a vida a mim’, brinca, relatando a cena em que apartou uma briga, em 1963, entre o então deputado do PTB de Jango e seu maior desafeto na época, o hoje senador capixaba João Calmon. Brizola partiu para cima de Calmon e foi contido por ACM, que conta: ‘Ele iria morrer, na certa, pois Calmon carregava sempre um revólver num coldre sob a axila.’
No ano passado, cansado de ver tanto dinheiro do governo Collor sendo canalizado para a ‘Linha Vermelha’ de Brizola – a via expressa que liga o centro do Rio de Janeiro à Ilha do Governador -, ACM batizou de ‘Linha Verde’ a sua rodovia do litoral norte baiano. ‘Não adiantou nada’, lamenta-se. ‘Dos 53 milhões de dólares, não recebi mais do que 4 milhões de repasse federal.’ Em março, irritado com a propaganda do PDT na campanha do plebiscito, que incluiu ACM na panelinha dos parlamentaristas, ele mandou um fax bem-humorado a Brizola, pedindo para corrigir o equívoco. ‘Apesar de alguns adeptos do sistema, também sou presidencialista’, avisou, esclarecendo que o parlamentarista da família é seu filho, Luís Eduardo, líder do PFL. ‘Aliás, como é bom ter um filho que nos dá grandes alegrias!’, cutucou ACM, arranhando a fronteira familiar que ele tanto preza com uma alusão venenosa às dores de cabeça que Brizola volta e meia tem com sua irrequieta filha Neuzinha. E terminou com uma típica conclusão de Toninho Malvadeza: ‘Tenho motivos para acreditar que este equívoco não deve ter sido maldade de sua parte’, provocou.
Na Bahia de todas as crenças, existe um ditado muito vivo que resume a realidade fantástica da nação baiana: ‘Aqui, traficante se vicia, prostituta goza e cafetão se apaixona.’ No terreiro do poder, Antonio Carlos Magalhães é um orixá que, na política, vicia, tem prazer e apaixona. Às vezes parece anjo, às vezes demônio. Um orixá capaz de enternecer, mas sem perder a malvadeza jamais.
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Jornalista ligou, ele atende
Venha de onde vier, a ligação de um repórter para o telefone 247 0022, em Salvador, nunca será desperdiçado. Ali, no Palácio de Ondina, residência do governador, vai atender outro repórter, talvez o melhor repórter político do país. A voz firme e a risada debochada vão identificar Antonio Carlos Magalhães. Afastado há trinta anos das redações, ele soube se manter próximo dos jornalistas mais importantes do país.
Por isso mesmo, o ginasiano que estreou precocemente no jornalismo, aos 16 anos, cobrindo futebol para o vespertino Estado da Bahia, ganhou agora em maio o reconhecimento definitivo da profissão que abandonou em 1960 para se dedicar integralmente à política: ACM foi devidamente identificado, em on, como a melhor fonte política da imprensa brasileira. No livro recém-lançado Manual da Fonte – Como Lidar com os Jornalistas, o repórter Geraldo Sobreira entrevistou alguns dos principais colunistas, repórteres políticos e chefes de redação no eixo Rio-São Paulo-Brasília para chegar à informação de cocheira que todo mundo já tinha: ACM, para o bem ou para o mal, é o grande informante da política. (A segunda melhor fonte, segundo o livro, é o chanceler Fernando Henrique Cardoso).
‘ACM é o primeiro escalão da notícia’, afirma Sobreira. ‘Ele sabe o que interessa e a quem interessa.’. O jornalista Marcos Sá Correa, ex-editor do Jornal do Brasil e hoje editor especial da revista VEJA, acrescenta: ‘Antonio Carlos não é um mero depósito de informações. É uma fonte que sabe o que é notícia, com capacidade de analisar e de saber o peso que as coisas têm.’ O diretor da sucursal de Brasília da Folha de S.Paulo, Gilberto Dimenstein, completa: ‘É um político ultra-intuitivo, experiente, com inteligência acima da média.’ Desde sua estréia como deputado federal, em 1958, ACM tem acompanhado de perto os fatos mais significativos de nossa História – às vezes centralizando a própria notícia, como no caso da resposta desaforada ao brigadeiro Délio Jardim de Mattos, que o acusava de desertar da candidatura Maluf, em 1984. ‘Trair a Revolução é fazer o jogo de um corrupto’, devolveu ACM, tirando o uniforme de ‘Toninho Malvadeza’ da ditadura para vestir a camiseta de ‘Toninho Ternura’ nos palanques das diretas.
ACM é o político que, como todo bom repórter, tem o talento e a sorte de estar ao lado da notícia na hora certa. Antes de redigir sua dura resposta ao ministro da Aeronáutica, ligou para o dono da Rede Globo. ‘Roberto, vou responder’, avisou, com a autoridade e a intimidade de um dos raros brasileiros dispensados de chamar o jornalista e empresário Roberto Marinho, seu amigo há 35 anos, de ‘doutor’ – reverência observada, aliás, por qualquer presidente da República, civil ou militar. Ligar para ‘Roberto’, de fato, é uma rotina diária de ACM, que telefona para informar e ser informado.
Ele nunca deixa de atender ou retornar uma ligação, sem consultar agenda, apelando sempre para sua memória, que lhe permite relatar episódios com datas e detalhes fotográficos. Nos anos agitados de Juscelino, Jânio e Jango, nos bastidores do golpe de 1964, na sombra dos governos dos generais-presidentes, na transição para a democracia, no dramalhão do governo Collor, ACM movimentou-se com a agilidade de político e a curiosidade de repórter – e desenvolveu uma invejável capacidade de avaliação dos últimos 40 anos da política brasileira. Todas as sucessões presidenciais, a partir da queda de Jango, em 64, tiveram em ACM um profeta preciso. Até quando apoiou o coronel e ex-ministro Mário Andreazza, ele sabia que o vitorioso no Colégio Eleitoral de 1984 seria o nome do consenso – Tancredo Neves -, nunca Paulo Maluf. Por isso, antes mesmo da convenção do PDS, Antonio Carlos já manobrava a dissidência governista para apoiar a chapa da Nova República, a que ele acabou servindo como único ministro civil a atravessar todo o governo Sarney, na pasta das Comunicações.
Essa intimidade com o poder não evitou, porém, que ele cometesse o maior erro de avaliação de sua carreira: o apoio a Fernando Collor. ‘Ele sabia que havia ladroagem, chegou a pedir a cabeça de PC Farias, mas não acreditava no envolvimento do presidente, nem no impeachment’, diz um dos políticos mais ligados a ACM. Na verdade, acerta bem mais do que erra. Por isso, seu telefone não pára de tocar, mesmo durante as refeições. Nessas horas impróprias, ele tem um truque para abreviar a conversa: coloca uma garfada generosa na boca e só então pega o telefone. Fala mastigando com o repórter, para lembrar sem sutileza que a conversa não deve atrapalhar o almoço ou jantar. Mesmo quando o chamado é da Folha de S.Paulo, que costuma criticá-lo, ele não deixa de ser gentil com o repórter. ‘Teu jornal não gosta de mim, mas eu gosto muito de você’, declara, antes de entrar no assunto. Ele prefere também jantar em paz. O que não impede que, terminado o cafezinho, volte ao telefone, após a meia-noite, para mais uma rodada de conversa, madrugada adentro, com jornalistas dos grandes centros.
Fala tudo, sem constrangimentos, e apela pouco para o off, a notícia sem citação da fonte. Afinal, ACM é a própria notícia, fale o que falar. Alguns respeitáveis nomes da imprensa lhe atribuem a paternidade de uma impiedosa classificação de jornalistas em dois times distintos: os que querem favores, na forma de emprego ou dinheiro, e os que querem notícia. ‘O importante é que não se faça confusão, oferecendo favores a quem busca notícia ou dando notícia a quem quer favores’ – teria sido esta a engraçada conclusão de ACM, que nega com veemência a autoria da frase e a visão indelicada para com a classe jornalística.
Com exclusividade para Playboy, ACM listou as sete regras capitais de sua manual da boa fonte:
1. ser bem informado;
2. ter credibilidade;
3. confiar no repórter;
4. nunca colocar o repórter na pista errada;
5. dar a devida importância a cada jornal, cada coluna, cada repórter;
6. municiar o repórter para que ele não desperdice a ligação telefônica; e
7. fazer o repórter acreditar que ele é tão importante quanto o dono do jornal.
Nem sempre isso é possível. Tempos atrás, ele travou uma batalha divertida com Gilberto Dimenstein. Baseado num documento da Procuradoria-Geral da República, o jornalista disse que o governador da Bahia recebia uma aposentadoria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia sem nunca ter dado aula. ACM, de fato, embolsa a aposentadoria, mas não precisou provar que ela corresponde a aulas que tenha dado: uma ação popular contra ele movida na campanha de 1990 acabou prescrevendo. Ao ler o artigo de Dimenstein, respondeu com um telegrama pedindo que ele fornecesse ‘o atual endereço da senhora sua mãe para enviar a respectiva aposentadoria’. Um assessor não entendeu o ‘atual’. Ele explicou: ‘É para o jornalista pensar que eu conheço o endereço antigo…’ Dimenstein replicou, zombando do português precário da ofensa, que apelava para um ‘destinto (sic) jornalista’. ACM descobriu que o dicionário registra ‘destinto’ como ‘sem tinta’. As provocações continuam. ‘Vejo que eu e o Dimenstein estamos pensando a mesma coisa do governo Itamar’, brinca Antonio Carlos. ‘No caso de ACM, o jornalista não deve ficar nem tão próximo que não possa informar, nem tão distante que não possa ser informado’, adverte Dimenstein. Na verdade, uma lição útil para qualquer repórter e toda boa fonte. E sempre saudável para o leitor. (Luiz Cláudio Cunha)
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