A disputa religiosa é a segunda maior causa de guerras na história da humanidade. A primeira é, obviamente, a conquista territorial para garantir a subsistência e a sobrevivência. Nesta questão primordial, o ser humano não se distingue das outras espécies animais que se engalfinham em busca do espaço vital para produzir alimento, agasalho e a preservação do grupo. Asseguradas as necessidades biológicas, os animais ditos racionais passam a guerrear-se para impor suas crenças.
Lamentável: a vantagem competitiva oferecida pela racionalidade em vez de pacificar os instintos só os exacerba. Em termos concretos significa que a busca da paz genuína compreende um esforço ostensivo dos envolvidos para retirar da pauta dos contenciosos todos os ingredientes capazes de fomentar o fervor religioso ou a ferocidade confessional.
Em outras palavras: é preciso tirar Deus da arena política. Há indícios de que isto está acontecendo na Europa – prova de que o Velho Mundo ainda é uma referência – porém na Ásia e na África religião é dinamite pura. No mitológico Novo Mundo, sempre associado à imagem de liberdade, a religião foi imposta a ferro e fogo. Na parte setentrional do continente, mais de cinco séculos depois da chegada de Colombo, encontramos uma situação não muito diferente daquela que existia em 1492, quando a Espanha expulsava os mouros e os judeus do seu território.
Nova dimensão
Hoje, nos EUA (segundo a Economist de 16/8, pág. 35), cerca de 90% dos cidadãos declaram-se religiosos, 63% acreditam que a Bíblia é a palavra divina e que religiosidade é prova de bom caráter. Apenas 42% dos norte-americanos afirmam que votariam num agnóstico ou ateu para a presidência enquanto 56% votariam num homossexual e 93% aceitariam um negro.
Esta exótica religiosidade numa comunidade tão diversificada e numa civilização tão materialista produz situações singulares como o primeiro encontro dos dois candidatos à Casa Branca, Barack Obama e John McCain, realizado no megatemplo do poderosíssimo pastor Rick Warren na Califórnia, semana passada. Obama veio para mudar, conseguiu ser pós-racial, pós-ideológico, mas não conseguiu ser pós-religioso. Sequer tentou.
Na Íbero-América, a conversão forçada dos nativos e a presença da onipotente, onisciente e implacável Inquisição criou um paraíso monolítico católico que agora começa a ruir diante do formidável avanço das seitas protestantes de variadas filiações. Sem o apoio das massas, certos grupos e ordens ligados ao Vaticano (como a Opus Dei) tentam barrar este avanço evangélico através de um grande empenho na área da comunicação social onde os evangélicos estão poderosamente inseridos.
As eleições de outubro têm tudo para transformar-se no primeiro round de um confronto formal e ostensivo entre evangélicos e não-evangélicos graças à presença de Marcelo Crivella (PRB) como candidato à prefeitura carioca. Sua eleição anterior para o Senado foi apenas um ensaio: sua postulação a um cargo majoritário, numa cidade-vitrine como o Rio de Janeiro, dá outra dimensão a uma disputa que em outras circunstâncias seria no máximo partidária. Agora é midiática, aos pés do Redentor, portanto religiosa.
Milícia & bandidagem
Na antiga Cidade Maravilhosa está a sede do poderoso Grupo Globo, cujo maior competidor é a TV Record, carro-chefe da Igreja Universal, de propriedade do bispo-empresário Edir Macedo, tio do candidato Crivella, por enquanto líder nas pesquisas.
Crivella tem o apoio do governo federal, seu partido é o mesmo do vice-presidente da República e do ministro Mangabeira Unger, que aposta numa reedição da história de sucesso da Coréia do Sul, onde a opção pelo protestantismo foi estratégica.
Os desdobramentos de um eventual confronto são preocupantes. Embora administrada como empresa multinacional, a Igreja Universal adota um proselitismo agressivo. Seu poderio eleitoral, sobretudo nos segmentos menos favorecidos, pode potencializar conflitos subjacentes. Nas comunidades carentes do Rio onde atua, até a panfletagem precisa ser aprovada pela bandidagem ou pela milícia (o que vem dar no mesmo).
Deus nos palanques tira Marx da jogada. Religião deixou de ser o ‘ópio do povo’, porém nada impede que se converta em ‘coração de um mundo sem coração e alma da condição desalmada’. Guerras religiosas são insaciáveis. Mais nocivas do que as produzidas pela fome.
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