Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Diário do Pará, o novo Liberal

Algum tempo atrás, ninguém podia sequer pensar neste fato: O Liberal não ser mais o líder dos jornais. O Diário do Pará, autor do feito, porém, ameaça repetir os males para os quais devia ser a alternativa. Há um novo diário oficial na praça, em busca de seus interesses e do faturamento. Como antes.


Ninguém mais põe em dúvida que o Diário do Pará, do deputado federal Jader Barbalho, deslocou O Liberal, dos Maiorana, de uma liderança na qual a publicação se manteve durante três décadas, em vários momentos superando os 90% de índice de leitura. Nem mesmo O Liberal questiona essa nova e surpreendente situação. Ao contrário: a empresa vem recuando de posição, exposta a ficar num lugar cada vez mais distanciado do concorrente, algo inimaginável pouco tempo atrás.


A derrocada, que já era comentada nos bastidores, se tornou explícita quando O Liberal se desfiliou às pressas do IVC (Instituto Verificador de Circulação), em 2006, para não ser flagrado mais uma vez fraudando os números da sua tiragem, em queda vertical. Em seguida o jornal sofreu mais duas derrotas nesse front: foi obrigado pelo Conar, o conselho responsável pela auto-regulamentação da propaganda no Brasil, a não usar mais o título de ‘o maior jornal do Norte e Nordeste do Brasil’ (o que, a rigor, nunca foi), e, agora, a também jogar fora a marca que passou a usar quando novamente pego na mentira: ‘o melhor jornal do Norte e Nordeste’.


Outro golpe duro foi a perda da publicidade do maior anunciante privado do estado, o grupo Y, Yamada. A Yamada se tornou a primeira empresa a reagir às imposições de veiculação dos Maiorana, que continuavam a cobrar por uma tabela de preços sem respaldo mercadológico e a interferir na mídia dos anunciantes para evitar a programação no concorrente. A Companhia Vale do Rio Doce, que é a maior empresa em atuação no Pará, embora sediada fora do seu território, tentou reagir e até ajuizou uma ação contra O Liberal, mas acabou recuando e compondo com os Maiorana. Os Yamada mantêm a decisão de excluir os veículos das Organizações Romulo Maiorana da sua propaganda, exceto em momentos excepcionais (o Círio de Nazaré e o Natal).


Porta dos fundos


Nesse contexto, a constatação da realidade até dispensaria os números da apuração técnica. Na segunda-feira, qualquer observador verificará pilhas de exemplares remanescentes da edição dominical de O Liberal à espera de recolhimento, que geralmente tarda. Nas principais bancas da cidade, é comum haver de três a quatro pacotes, com mais de meio metro de altura, de encalhes do domingo, quando a circulação dos jornais dobra. Vários vendedores já pediram a redução da tiragem, mas a empresa não lhes dá atenção.


Esse é um mistério: por que O Liberal se permite suportar encalhes de mais de 60% da tiragem, jogando papel fora ou o vendendo para reciclagem, a preço que nem é de banana? Será para não ter que admitir uma circulação paga equivalente a um terço ou menos da que tinha na época de fastígio, quando era o único jornal do Pará – e um dos dois únicos da Amazônia – auditado pelo IVC, sinal de força e prestígio? É também para não admitir que a tendência à queda é constante, quem sabe, irremediável?


Há, agora, um mistério ainda maior do que esse: por que, mais de um ano depois de ter-se filiado ao IVC, o Diário do Pará não divulgou um único resultado de auditagem do instituto, uma das entidades de maior credibilidade no país? No dia 6/1 o jornal publicou mais uma pesquisa do Ibope, realizada no mês anterior, confirmando a existência e a expansão da sua liderança, que é inconteste. Fez rápida referência ao IVC, mas continuou silente sobre a aferição do instituto. O que estava em causa era a pesquisa do Ibope, mas ela sempre foi encarada com reservas pelo mercado de jornais impressos. Não por suspeita de manipulação ou coisa que o valha: simplesmente por ser inadequada aos fins pretendidos.


O Ibope mede índice de leitura, enquanto o objetivo do IVC é a circulação paga. Um jornal pode ter um índice de leitura descolado da quantidade de exemplares realmente adquiridos pelo leitor. Qualquer pesquisa sobre o Jornal Pessoal, por exemplo, será distorcida pela circunstância de que há uma média de leitores por exemplar muito maior do que o índice de leitura padrão, que é de três leitores. Uma sondagem empírica mostrou que o JP é lido, em média, por 10 e até 15 leitores, porque é de pequeno tamanho, permitindo cópias xerox, e por ser emprestado de mão em mão graças à sua periodicidade mais demorada. Assim, pelo índice de leitura, é provável que ele esteja competindo com o Amazônia Jornal, o fona dos diários em Belém.


O índice de leitura é levado em consideração, sem ser, no entanto, o fator principal para a programação de anúncios. O IVC e a Folha de S.Paulo travaram feroz batalha, alguns anos atrás, em torno da circulação efetivamente paga do jornal dos Frias, que conquistara a liderança nacional, passando à frente de O Estado de S.Paulo e O Globo. O IVC queria excluir exemplares que eram repassados ao público por preço que considerava inferior ao de custo, além de outras divergências técnicas, não endossadas pela Folha.


Sem conciliação, o jornal se desfiliou do instituto, mas não abruptamente nem mudo, como fez O Liberal, que saiu na véspera da chegada de uma equipe do instituto incumbida de fazer a primeira auditagem de 2006, depois de constatar as fraudes no exercício anterior. O rompimento entre a Folha e o IVC foi tão danoso para o mercado publicitário brasileiro que logo apareceram os intermediários para promover a recomposição. Não houve essa iniciativa no caso de O Liberal porque a saída do jornal dos Maiorana foi uma fuga pela porta dos fundos da credibilidade.


Senso de medida


O Diário do Pará não conquistará esse respeito enquanto não se souber os resultados de sua primeira auditagem. Fontes do jornal alegam que esses números são confidenciais, que só são divulgados se houver interesse e que nenhum outro veículo toma essa iniciativa. Todos esses argumentos – e mais alguns – são falaciosos. A Folha de S.Paulo divulga sua tiragem todos os dias, na primeira página. O Estado de S.Paulo não faz o mesmo porque perde diariamente para o concorrente, mas aos domingos, quando sua circulação cresce e há certa eqüidade, lá está a tiragem, também na capa. Os números constam de boletins especializados, que podem ser acessados, embora com alguma dificuldade. Mas todos os filiados ao instituto recebem seus resultados. A fraude de O Liberal só se tornou pública porque uma das empresas filiadas ao IVC vazou seu relatório. O maior suspeito pela inconfidência foi A Tarde, de Salvador, cujos dirigentes se cansaram de ver a propaganda anunciando O Liberal como o maior jornal do Norte e Nordeste, primazia do diário baiano.


Será que não há números do IVC sobre a circulação paga do Diário do Pará porque o instituto não concluiu sua primeira auditagem do jornal do deputado federal Jader Barbalho? E não a concluiu porque a empresa ainda não se ajustou às suas exigências? Será que concluiu e o Diário não divulga os resultados porque eles não são tão favoráveis quanto supunha? Será que há grande contraste entre o índice de leitura e a vendagem real, deixando à mostra manipulação na comercialização, através de gratuidades, cortesias, preços rebaixados, excessos na bonificação de anúncios e outros fatores?


Como há muitas dúvidas, há muitas especulações também. A forma mais cabal de eliminá-las é a divulgação dos números do IVC, que o Ibope não tem como suprir, ainda mais porque a divulgação feita pelo Diário das sondagens do mais antigo instituto de pesquisa de opinião é tão canhestra (ou mais) do que as de O Liberal.


A aparência de repetição de procedimentos é reforçada pela posição editorial do novo líder. Ao invés de investir no conteúdo editorial, o Diário decide aplicar em máquinas e equipamentos, em promoções comerciais e na cada vez mais estreita vinculação ao maior de todos os anunciantes: o governo. O jornal está cada vez mais chapa-branca, quase aquele Diário Oficial diáfano que foi O Liberal nos 12 anos de tucanato. Não há mais matérias críticas sobre a prefeitura de Belém e o governo do estado. Quando muito, pálidas referências, notícias escondidas.


O cidadão comum já começa a perceber que fatos desfavoráveis aos dois governos podem ocorrer à vontade que não aparecerão no Diário, mesmo quando seus repórteres tenham estado no local para a cobertura. O estigma do comercialismo, que destrói o jornalismo, começa a rondar a torre da Avenida Almirante Barroso, depois de ter devastado a credibilidade da folha situada no quarteirão seguinte, nos fundos do bosque Rodrigues Alves (hoje, horto florestal). Daqui a pouco os profissionais da casa começarão a ser hostilizados pelo público, como ocorreu quando a arrogância dos donos de O Liberal se tornou desmedida, levando-os a decidir em lugar de toda a comunidade, ignorando-a.


Essa auto-suficiência fez os Maiorana perderem o senso das oportunidades e das medidas, obcecados pelo faturamento comercial. Usando o enorme poder de que desfrutaram (e agora já bastante atenuado por sua fragilidade econômico-financeira, com baixa liquidez), impuseram as regras do jogo a todos quantos queriam entrar na dança.


Profilaxia política


O resultado é que opinião pública passou a ser mercadoria, em transação de compra e venda no mercado restrito das ORM. Uma posição a favor se tornava subitamente contra, se houvesse pagamento, ou vice-versa, em não havendo. Quem tivesse dinheiro para fazer os lances se dava bem, mas o resultado foi a desmobilização da verdadeira opinião pública, o descrédito geral, esse clima de indiferença e cinismo que tanto mal faz ao Pará, destituído de eco, de vontade, de iniciativa. Com opinião publicada e não com opinião pública, que virou visagem.


No caso do Diário, a promiscuidade é agravada pelos projetos políticos do dono, que planeja voltar ao epicentro do poder, agora de forma mais calculada, especializado em surdina e nos bastidores. Jader Barbalho tenta compor interesses variados (e conflitantes, como os de Duciomar Costa e Ana Júlia Carepa), ao mesmo tempo em que induz a prevalência do seu interesse, num campo de batalha que pode degenerar para uma eleição violenta, por falta de conteúdo ou por excesso de culpabilidade (deixou de haver inocentes na arena). Numa eleição em que mocinho dificilmente entrará, o grande problema é saber quem é menos ruim, ou menos nocivo, ou, quem sabe, um tantinho melhor.


A imprensa desempenharia um papel vital na pedagogia e na profilaxia política, desde que tivesse algum grau de distanciamento, de independência, de capacidade de avaliação. Mas ela está em campo para faturar e para servir aos interesses dos donos, mais do qualquer outra coisa. Sua gangorra funciona, mas o poder que sobe equivale ao poder que desce. O Diário do Pará, que realizou a incrível façanha de destronar O Liberal, fonte da maior parte do discricionarismo que se espraiou pelo estado, ameaça repetir o mal.


Pobre Pará.


Distância cósmica


As redações de O Liberal e do Amazônia Jornal, os diários da família Maiorana, são contíguas no mesmo espaço. Mas parece que estão em mundos distintos – e até opostos. O Amazônia noticiou um fato grave, que representou ameaça a um de seus jornalistas dentro da redação. O Liberal, carro-chefe do grupo, simplesmente o ignorou, como se não tivesse acontecido.


A redação do irmão mais novo foi invadida pelo vereador Júnior Rabelo, tido como filho do prefeito de Breves, Luiz Rabelo, também um dos maiores armadores fluviais da região, de família que domina o Marajó e arredores. Acompanhado por dois homens fortes, um dos quais armado, apresentados como ‘assessores’, mas aparentando serem seguranças, tentou impor seu direito de responder a uma matéria publicada na edição de 29 de dezembro do jornal, dois dias depois do fato.


Ela informava sobre a prisão do vereador e de um investigador da polícia civil, flagrados por integrantes da Delegacia de Crimes Funcionais em tentativa de extorsão contra um atravessador de madeira (também analista de sistemas), em Belém, no estacionamento de uma loja de departamentos localizada na avenida Doca de Souza de Franco. O vereador pagou fiança e foi solto, depois de permanecer preso menos de um dia no quartel do Corpo de Bombeiros, em cela especial. O investigador continuou na penitenciária de Americana, em cela comum, por não ter o dinheiro da fiança nem quem se dispusesse a pagá-la. O inquérito está em curso.


O texto que o vereador apresentou na redação como direito de resposta não foi aceito pelo representante do jornal que o atendeu porque, ‘ao invés de defendê-lo das acusações, procurava atacar a vítima da suposta extorsão, um analista de sistemas que não teve o nome divulgado’. Não era texto de defesa, mas de acusação, o que autoriza legalmente a recusa da publicação, poupando-se da réplica e da rixa. Irritado, o vereador se exaltou e seu ‘assessor’ armado, identificado como Nonato, começou a circular pela redação, numa atitude de intimidação, registrada pelo circuito interno de televisão do jornal.


Integridade da equipe


Com as imagens, a ocorrência foi comunicada ao delegado-geral de Polícia Civil, Justiniano Alves Júnior, que determinou a abertura de inquérito para apurar a alegada tentativa de intimidação, sob a presidência do delegado Antônio Benone, também da Delegacia de Crimes Funcionais (Dcrif), onde está sendo investigado o caso de extorsão do qual o vereador é acusado.


O Amazônia ainda publicou una nota que lhe foi enviada pela secretária de Finanças de Breves, Elizabeth Maria da Silva Lima, esclarecendo que uma informação publicada pelo jornal não estava ‘à luz da verdade’. Por isso, o prefeito do município, Luiz Furtado Rebelo, se sentia obrigado a solicitar direito de resposta, ‘no sentido de esclarecer que o vereador citado na reportagem, não se trata de seu único filho, Luiz Furtado Rebelo Filho’. Pedido feito civilizadamente.


Nada disso apareceu em O Liberal, como se o órgão mais influente da corporação não se sentisse obrigado a noticiar um fato relevante e menos ainda a garantir a integridade dos seus repórteres. Integridade cada vez mais ameaçada nas ruas, como atestou a morte recente de dois integrantes da TV Liberal, durante viagem no desempenho de suas tarefas. O trágico acontecimento fez a direção da empresa cancelar as festas de fim de ano. Mas não a criar seguro de vida para seus funcionários, que exercem função de alto risco, sem cobertura de seus patrões.


Sangue impresso


Quantos jornais brasileiros ainda têm um caderno todo dedicado aos fatos policiais? Talvez ainda haja algum em cidades menores, mas nas metrópoles apenas os jornais de Belém mantêm esse péssimo hábito – ou vício – editorial. Durante algum tempo, só o Diário do Pará cultivou essa excrescência, em formato tablóide. Talvez para compensar o tempo perdido, O Liberal veio em seguida com o dobro de páginas – e em formato standard. Computados os dois jornais, são 18 páginas em tamanho tablóide todos os dias. E há ainda as fornidas páginas policiais do Amazônia Jornal, também dos Maiorana, mas de menor repercussão.


A cobertura policial é importante, essencial mesmo. Mas o espaço compulsório diário acarreta os exageros, o sensacionalismo e a má-fé. De abuso em abuso, chega-se a um jornalismo de engulhos. Tive náusea e asco, no dia 29 do mês passado, ao ver um cadáver (‘presunto’, na linguagem do setor) com as vísceras expostas em uma foto aberta numa das páginas de O Liberal. Alguém se permitiu o sadismo de puxar a camisa do defunto para que seu ventre ficasse à mostra para o flagrante fotográfico. Foi a imagem mais chocante nessa escalada de insensatez e desrespeito.


O espaço ocupado pela foto chocante podia ter sido usado com texto mais extenso do que o registro desinteressado da matéria. O crime ocorreu em Castelo dos Sonhos, onde a população diz que há uma morte a cada dia e dificilmente alguém é preso (e muito menos punido). Castelo dos Sonhos fica a mil quilômetros da sede do município, Altamira, que ocupa quase 15% da superfície do Pará, estado que tem quase 15% do tamanho do Brasil. Essa distância influi na selvageria do local?


Violência banalizada


Claro – e aí estão, evidentes, alguns dos malefícios da distorção territorial do estado, que precisa ser diagnosticada e corrigida e será tema enfático em 2008. Mas a sede do município vizinho, Novo Progresso, está a apenas 155 quilômetros. Novo Progresso foi desmembrado em 1991 de outro super-município paraense, Itaituba, mas nem por isso faz jus ao nome: a violência é quase igual, o progresso é quimérico.


No ano passado, uma criança de nove anos degolou ali outra de cinco. Como é que uma mente infantil pôde conceber e executar um ato tão violento? Não foi por patologia individual: a violência está na cara de todos, à luz do dia, grassando como malária. E os jornais se incumbem de se tornar hospedeiros desse vírus mortal. Não se pejam de abrir fotos de cadáveres cercados por crianças alegres e saltitantes, cena comum na periferia criminosamente abandonada de Belém. Aquela alegria aparente na imagem estática esconde um dado fúnebre: a inocência dos anos primaveris já acabou. Depois, o fogo, como diz o título bíblico de um romance do negro e homossexual James Baldwin sobre esse tipo de violência nos Estados Unidos. E aqui?


É possível que qualquer jornal se veja obrigado a abrir páginas para o noticiário policial se o fato em cobertura justificar. Mas não a abrir espaço desmesurado sistematicamente, todos os dias. Essa ênfase não pode ser apontada como causa direta do crescimento do índice de criminalidade, mas não há dúvida que contribui para tanto lateralmente. Não é pequena a quantidade de criminosos que se deleita com sua foto publicada, sua imagem exibida na televisão, ou suas façanhas narradas pelas emissoras de rádio (que estão se tornando um caso à parte de polícia).


A exibição escancarada de matérias policiais todos os dias tem uma conseqüência certa: vulgariza e banaliza a violência, anestesiando a consciência e amolecendo a vontade. O efeito é imediato e local. Começa pelo próprio editor dessa miséria humana, que lida com ela destituído daquilo que é fundamental: a sensibilidade humana.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)