Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Dilma agrada evangélicos com lei inconstitucional

O Brasil tem uma tradição republicana laica, vinda dos franceses positivistas e dos maçons, assegurando a separação entre a Igreja e o Estado, integrada na Constituição de 1891. Não há uma declaração expressa afirmando essa separação, mas na Declaração dos Direitos dos Cidadãos, a Constituição deixava explícito no artigo 72, que, modificado em 1926 passou a ser :

§ 7º Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official, nem terá relações de dependencia ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A representação diplomatica do Brasil junto á Santa Sé não implica violação deste principio.

A Constituição reconhecia direito igual para todas as religiões, que as pessoas seriam livres para seguir qualquer religião ou não ter religião, que o ensino público seria laico nas escolas públicas e que só seria reconhecido o casamento feito em Cartório.

Entretanto, a Igreja Católica, na época dominante e sem  a concorrência atual dos evangélicos, considerou-se prejudicada inclusive na questão do casamento que só teria valor quando celebrado em cartório civil. Por isso, se mobilizou quando da elaboração da reforma das Constituições de 1934 e 1937, através da Liga Eleitoral Católica que pleiteava não só a validade civil dos casamentos feitos diante dos padres, chamados casamentos religiosos, como a inscrição na lei da indissolubilidade do casamento, para assegurar sua posição contra o divórcio.

Assim, embora se tivesse mantido a separação da Igreja e do Estado, o clero católico obteve também o retorno do ensino religioso e a administração dos cemitérios também por associações religiosas. Isso implicou igualmente na introdução da palavra Deus, no preâmbulo da Constituição, mas como argumentou o STF, sem poder normativo, isto é, sem que o Estado teista implicasse numa união com a Igreja, como ocorre em muitos países, inclusive Israel, e no Médio Oriente, que são Estados teocráticos.

Conquista da sociedade moderna

A separação do Estado da Igreja é uma conquista da evolução da sociedade moderna, do fim dos regimes religiosos da Idade Média na Europa, nos quais os próprios reis dependiam para serem coroados e governar do reconhecimento e bênção do Vaticano, considerado representante do poder divino. O Renascimento, o Iluminismo e a ruptura da unidade dos cristãos com a Reforma provocando um pluralismo religioso cristão, as interpretações não religiosas, seculares ou laicas da vida e da sociedade levaram à necessidade de se separar o Estado, ao qual pertencem todos os cidadãos, da Igreja com seus diferentes tipos de fé, seus dogmas, credos, crenças convivendo com o mundo real mas a ele não pertencendo.

Se durante um século, desde a introdução por missionários, as denominações protestantes foram minoritárias, contentando-se em ter apenas alguns deputados estaduais em alguns Estados e não se interessando, por tradição calvinista ou luterana, em intervir na legislação do Estado, (como tinham aconselhado Cristo e o apóstolo Paulo) esse quadro mudou nas últimas décadas.

O surto do evangelismo começou na América Central nos anos 60, onde a promessa bíblica de uma vida futura melhor, num céu ou paraíso e com vida eterna, fizeram as populações mais carentes darem mais crédito ao discurso de pregadores que aos dos políticos ou revolucionários. Mas tão logo os pregadores perceberam o número de fiéis, obtido com suas promessas de autênticos vendedores de loteamentos no céu e promessas abstratas, decidiram ter uma parcela do poder temporal, numa espécie de ter o certo possível que o duvidoso.

O centenário da Guerra dos Canudos nos leva a estabelecer uma certa relação do evangelismo populista, diferente do protestantismo clássico mais intelectualizado, com os seguidores ingênuos e beatos de Antonio Conselheiro, que sem exclusão e perseguição, se tornaram pacíficos, passivos e de grande abnegação. Ao mesmo tempo não se pode esquecer ser a religião um lenitivo contra as dores da pobreza, das injustiças e das depressões, funcionando o pregador como um psiquiatra dos pobres, ajudado pela magia dos cantos, das orações e da fé exercida em coletivo geradora de maior confiança.

Ao contrário das denominações protestantes, cujos pastores têm uma formação universitária teológica,os pregadores evangélicos se improvisam ao se sentirem chamados para levarem a palavra ao povo. Uma parte são aproveitadores da fé dos incautos e simples, mas outra parte age como tendo sido escolhida pelo deus com os quais imaginam ter uma relação mais próxima. E utilizando a sabedoria popular, mesmo sem formação escolar, conseguem encantar seus seguidores. As igrejas evangélicas garantem ser um canal direto de contato com deus.

Enquanto o protestantismo de origem européia e mesmo americana, como os presbiterianos, conseguem ser liberais e sempre foram pelo divórcio, aceitam o aborto e começam a aceitar o casamento homossexual e o exercício do pastorado por mulheres, o populismo evangélico e sua inspiração direta na Bíblia sem uma formação cultural, levam ao moralismo rígido de certa forma próximo do moralismo muçulmano, quando proíbem as mulheres de cortar o cabelo, de usar saias compridas e o véu na igreja, além de condenarem o homossexualismo  e a relação sexual antes do casamento.

O evangelismo chegou ao Brasil pouco antes do golpe militar e se expandiu com o apoio americano na compra de rádios e canais de televisão. Com uma Igreja Católica distante do povo com uma mensagem antiquada e condenando a teologia da liberatação para continuar junto do poder, os evangélicos encontraram um campo fértil para sua mensagem de se poder falar com deus e se ganhar uma vida eterna, com o perdão dos pecados, embora não se saiba muito bem que pecados possam ter os pobres trabalhadores.

Próximos dos 30 % da população, hoje os pregadores evangélicos se enriqueceram e sentiram ter também poder políticos. Alguns se sentem chamados por deus, mas outros utilizam a crendice popular como alavanca para terem cargos públicos e viverem melhor.

Tudo isso poderia ser muito simples, se os líderes evangélicos ficassem só nos cânticos dos salmos e hinos e nas prédicas para seus seguidores serem bons e abnegados. Mas não ficaram e hoje têm parlamentares e políticos decididos a colocar nas nossas leis e práticas o que imaginam ser da vontade de deus. E o Brasil já sente o risco de ter leis reacionárias para punir os homossexuais e as mulheres que abortam.

A Igreja Católica que sempre desfrutou do poder no Brasil, tendo apoiado o golpe dem 1964, namorar a possibilidade de ter uma Concordata com o Vaticano, como ocorre na Argentina (clero igualmente reacionário) com seus bispos sendo dignatários do Estado. Os evangélicos alimentam o projeto de as igrejas poderem fazer propostas ao governo ou parlamento.

A polêmica lei 13.246

E é nesse contexto que a presidente Dilma decide agradar os evangélicos sem desagradar os católicos, usando de seu cargo de dirigente de um país laico para decretar uma data para pregação do Evangelho, se esquecendo de que nem todos os brasileiros são cristãos ou religiosos.

Por ironia, a data escolhida, nesse gesto anti-laico, é o 31 de outubro – data  do primeiro protesto de Martinho Lutero contra as bulas papais e a venda das indulgências mas, ao mesmo tempo, a data da festa céltica  pagã de Halloween levada aos EUA pelos irlandeses, onde ficou muito popular com suas caveiras de abóboras, hoje comercializada, mas considerada pelos evangélicos como festa satânica.

Na sua incrível capacidade de errar, nossa presidente violou nossa tradição laica e querendo agradar aos evangélicos, que a fizeram em 2010 recuar depois de ter se declarado favorável ao aborto, não vetou uma lei levada ao Congresso em 2009 pelo deputado Neucimar Fraga, ex-prefeito de Vila Velha, no Espírito Santo. Depois de aprovada pela Câmara, a lei foi aprovada em 2015 pelo Senado com o apoio dos lobistas evangélicos.

A lei 13.246, que se esperava ser vetada por ser inconstitucional num país laico, foi sancionada na surdina, dia 12 de janeiro, pela presidente Dilma, numa tentativa de escapar do impeachment com o apoio dos deputados evangélicos. Será que a OAB vai deixar passar esse atentado à laicidade do Estado brasileiro?

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Rui Martins é jornalista e escritor