Uma campanha lançada recentemente por O Globo ocupa dezenas (centenas?) de outdoors e painéis em pontos de ônibus e em bancas de jornal no Rio de Janeiro. A partir de frases como ‘Carro na calçada? Fotografe’; ‘Carro indo pelo acostamento? Fotografe’; ‘Praia suja? Fotografe’; ‘Trânsito parado? Avise’; ‘Boa para hoje? Espalhe’, incentiva o envio de material para sua versão na internet, num suposto ‘jornalismo participativo’.
Aparentemente, a campanha está surtindo efeito. Em 17/11/2008, quando fortes chuvas atingiram a cidade do Rio durante a tarde, no início da noite o sítio do jornal exibia a chamada principal ‘Chuvas fazem estragos no Rio e complicam trânsito’. Abaixo, um slide em que todas as fotos eram de autoria de leitores.
Uma campanha neste estilo e com tamanha visibilidade obriga à reflexão sobre fundamentos do fazer jornalístico e o papel desempenhado por certa imprensa na sociedade brasileira. Este artigo, de caráter introdutório, busca suscitar o debate. A primeira parte diz respeito à relação entre este modelo de ‘jornalismo participativo’ e o trabalho jornalístico, articulando três eixos: relações de trabalho, ética e direito sobre o conteúdo produzido. A segunda discute a campanha com foco nas instituições do Estado Democrático de Direito.
Cínica e inócua
O primeiro problema que salta aos olhos – e o mais grave – é o do trabalho não-remunerado. A justificativa de que a seção ‘Eu-Repórter’ é ‘um veículo de jornalismo participativo’, e não ‘um veículo de divulgação de trabalho de jornalistas e/ou fotógrafos profissionais ou free-lancers‘ serve aos interesses da empresa, significando, na prática, que nenhum trabalho será remunerado – o que é explicitado no Termo de Compromisso e Direitos Autorais e nas Regras de Participação. Em um meio profissional onde os trabalhadores comumente são super-explorados, a transferência de parte do trabalho a voluntários que não recebem pagamento é ameaça grave e pode significar, na prática, demissões e piora das condições dos que mantiverem seus empregos. Isso sem contar seguro de vida, motorista, aposentadoria por invalidez, adicional de risco, hora-extra, adicional noturno, respaldo da empresa em caso de ameaças e agressões – alguns desses itens, entre outras garantias importantes, sequer existem para os repórteres que vão à rua, quanto mais para os leitores.
Imbuídos de um sentido torto de cidadania estimulado pela campanha publicitária e desconhecedores das relações de trabalho selvagens e dos salários aviltantes praticados na maioria das redações, leitores ávidos por usar os dispositivos tecnológicos à disposição contribuem para rebaixar ainda mais as condições de trabalho dos jornalistas. Se parte da empolgação dos leitores pode ser creditada ao desconhecimento das questões envolvidas em tal ‘participação’, é fundamental que as entidades associativas e de classe das profissões envolvidas venham a público denunciar a situação e esclarecer a população.
No plano ético, a não-verificação da autoria e das condições de produção do conteúdo abre espaço para erros e/ou fraudes, cada vez mais facilitados pelo avanço tecnológico. Tomando o exemplo da chuvarada no Rio: como garantir que a foto foi feita na cidade do Rio e na data em questão? Como garantir que o crédito da foto estará correto, considerando a notória facilidade para se assumir identidade de terceiros na internet? Como garantir que a foto é original, e não copiada de outro lugar? Ora, sabemos como podem ser – e muitas vezes são – as coisas na internet… A suposta exigência de que ‘o conteúdo deve obrigatoriamente ser de autoria que quem o envia’, sem que se estabeleça qualquer mecanismo de comprovação (o que demandaria mão-de-obra), é ao mesmo tempo cínica e inócua.
Condições leoninas
Acrescentem-se as múltiplas possibilidades de prejuízo a terceiros. Para não me estender, dou três exemplos: pessoas produziram conteúdos para uso pessoal, acadêmico ou profissional (alguém que teve seu celular furtado ou informações copiadas indevidamente de seu computador) podem ter os mesmos roubados e divulgados à sua revelia; pessoas mencionadas nos conteúdos e/ou que apareçam nas fotos e vídeos; pessoas que possam ter conteúdo falsa ou indevidamente publicado em seu nome etc.
O terceiro conjunto de problemas diz respeito aos direitos autorais e às responsabilidades. Há cláusulas claramente abusivas, como esta: ‘2.4. Caso o material seja enviado sem a indicação do nome do colaborador e não haja sua posterior identificação, presume-se a renúncia ao direito de crédito como autor.’ O Termo de Compromisso e Direitos Autorais é, na verdade, um contrato leonino em que a empresa fica com os lucros e o autor, com o trabalho não-remunerado e os eventuais prejuízos. Fora isso, iguala fotos e textos escritos, os quais são regidos por regras diferentes no que diz respeito ao pagamento por venda e/ou reprodução.
O Termo transfere os direitos ‘a título gratuito e por tempo indeterminado’, para quaisquer usos que a empresa queira fazer, inclusive venda e uso em publicidade ‘em qualquer mídia ou meio físico […] existentes ou que venham a existir’. A gama de usos possíveis é exaustiva. Resumindo, a empresa pode fazer o que quiser com o material, incluindo alterá-lo, armazená-lo e vendê-lo. Como se fosse pouco, ainda pode vender os direitos a terceiros. Quem produziu o material fica chupando o dedo, claro. Achou pouco? Pois bem, o autor do material fica proibido de utilizá-lo ‘a não ser para fins particulares e de caráter não econômico’. E o mais incrível: isto vale mesmo que o conteúdo não venha a ser utilizado pela Infoglobo! Isso são os direitos – todos da Infoglobo.
Leis burladas
Os deveres caem todos sobre o autor, inclusive responder a eventuais ações judiciais e ‘ressarcir a Infoglobo de todo e qualquer prejuízo advindo da utilização do referido material’. Se ela lucrar vendendo uma foto para o mundo inteiro e depois for processada, não ajudará o autor e ainda lhe cobrará o pagamento de advogados, custas e outras despesas.
Ademais, a alegação de que tal ‘jornalismo participativo’ representaria avanço em termos de ‘democracia’ não resiste à mais simples análise, uma vez que vários problemas graves e centrais do jornalismo realmente existente na imprensa corporativa brasileira se mantêm nesse modelo, entre os quais cito quatro: a) reprodução de material produzido pelo jornalista (que recebe um único salário) em diversos veículos e mídias, inclusive através de venda; b) falácia segundo a qual os conteúdos publicados supostamente teriam apenas notícia e nada de opinião; c) sujeição do material a critérios comerciais e políticos das empresas (o que implica derrubada matérias que tratem de certos assuntos, contrariem interesses comerciais etc.); d) limite de tamanho para os textos, impedindo qualquer aprofundamento dos temas.
Nos três planos – relações de trabalho, ética e direitos autorais –, a lógica que rege o funcionamento do ‘Eu-Repórter’ é a da dispensa de mão-de-obra e da transferência de custos e responsabilidades para o leitor-trabalhador em regime de semi-escravidão voluntária. Seria oportuno um pronunciamento de órgãos da esfera do direito, como Ministério Público e instituições de defesa do consumidor, pois trata-se de ‘contrato’ evidentemente abusivo. Outra contribuição relevante seria um estudo sistemático de tal prática à luz da legislação referente a pelo menos quatro temas: meios de comunicação, imprensa, direitos autorais e trabalho.
Centrais sindicais, sindicatos e partidos políticos que defendem os trabalhadores e a democracia também fariam bem em se manifestar. Aos órgãos de classe, por sua vez, fica a sugestão de buscarem prioritariamente defender garantia de trabalho e melhoria salarial para os jornalistas. Como se não bastassem as numerosas formas de burlar as leis trabalhistas praticadas pelas empresas de comunicação, agora a tentativa de dilapidar emprego e salários vem da abertura de espaço não-remunerado para o leitor.
Jogada de marketing
Diversos trabalhos acadêmicos têm analisado e comprovado o desprezo sistemático que os meios de comunicação corporativos (também conhecidos como mídia hegemônica, mídia grande, mídia gorda, mídia do capital etc.) nutrem pela democracia e pelas instituições democráticas, públicas e republicanas. Isto pode igualmente ser verificado através da observação empírica de jornais, televisão, rádio e internet. Sob a alegação de exercício de um quarto poder sem base legal ou eleitoral, vemos, salvo raras exceções, uma cobertura que apresenta as instituições como inoperantes, corruptas, ineficazes e injustas. Essa tomada de posição, nunca assumida como tal, não visa a contribuir para melhoria do funcionamento dos poderes republicanos e aprofundamento de seu caráter legítimo, democrático, ético, legal e garantidor de direitos.
Em outras palavras, não busca contribuir para que sirvam melhor ao público. Muito pelo contrário, a visada hegemônica da mídia gorda tenta esvaziar o político, fragmentar os sentidos (impedindo o estabelecimento dos nexos, relações e associações necessários à compreensão do mundo de forma a atuar nele criticamente) e, sobretudo, defender a privatização (pirataria) do máximo possível de espaços. Em suma, trabalhar a favor do capital.
Tudo isso ajuda a criar, nos corações e mentes das pessoas, a convicção de que as instituições são ineficazes (não funcionam) e irrecuperáveis (não têm jeito). Portanto, nada a reformar. Cria-se a idéia de desordem (palavra adorada pela mídia corporativa) e de um vácuo de poder em que a saída não passa pela discussão pública de soluções políticas. Nesse cenário, emergem, plenos de poder concreto e simbólico, os próprios meios de comunicação.
Proponho pensarmos, a partir deste breve panorama, um segundo sentido para o lema ‘Muito além do papel de um jornal’ – da mesma forma que o de outra empresa (‘Nem parece banco’) permite, na leitura crítica, uma compreensão mais verdadeira e próxima da realidade do que aquela aparentemente transmitida pela frase. ‘Muito além do papel de um jornal’ é o nome-fantasia da campanha de divulgação da mudança de título de Globo Online para O Globo, que assume, na internet, o mesmo nome do impresso octogenário. Portanto, pura jogada de marketing. Como tal, diz respeito à superfície e à forma.
Apelo à classe média
Porém, ao propor um certo tipo de participação, a campanha nos permite ir mais fundo na interpretação do lema adotado. O Globo pretende funcionar, ao menos simbolicamente – mas com efeitos bastante concretos do ponto de vista social –, como um poder que pune cidadãos supostamente em situação de conflito com a lei. Contudo, não se trata de qualquer transgressão e as ‘provas’ da mesma têm todos os possíveis problemas de legitimidade levantados na primeira parte deste artigo. Ao se investir do poder de polícia e guarda municipal e de julgar – e ao delegá-lo, em parte, a seus leitores –, O Globo, de uma só tacada:
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hipertrofia seu papel, indo ‘muito além do papel de um jornal’;**
contribui para a descrença coletiva nas instituições;**
nega aos cidadãos as informações sobre os canais corretos e institucionais para resolução de conflitos, identificação de situações de transgressão da lei e punição de eventuais culpados/condenados;**
nega o direito constitucional à ampla defesa e à presunção de inocência;**
abre ampla possibilidade para que se cometam crimes contra a honra, mentiras, fraudes e injustiças (como se os espaços editorial, jornalístico e publicitário dos veículos já não fossem suficientes…);**
torna mais precárias as relações de trabalho;**
dissemina valores (como a delação) que não correspondem às práticas culturais predominantes em diversos segmentos da sociedade;**
Numa cidade em que muitas pessoas consideram a ‘desordem’ um problema central, a campanha faz um apelo que cala fundo na classe média moralista – aquela que quer o ‘seu’ Rio de volta, como definiu na recente campanha eleitoral o slogan de uma candidata a vereadora.Mídia gorda contra-ataca
Para cumprir estes objetivos, convoca o leitor à conivência, sob a alcunha de participação. O Globo se aproveita dos desenvolvimentos tecnológicos para impor-se e estimula uma espécie de justiça com as próprias mãos que poderíamos chamar justiça com as próprias câmeras e celulares. Trata-se de desrespeito pelo Estado Democrático de Direito e pela longa trajetória de civilização em busca de uma sociedade com mecanismos justos, razoáveis e igualitários para lidar com divergências e crimes.
À primeira vista, parece uma iniciativa bastante simpática e democrática: o jornal acolhedor, que respeita e publica as posições dos leitores. Na prática, como os jornais não lucram com suas versões na internet, trata-se de uma tentativa de ampliar a visibilidade e força do jornal dentro da classe média carioca e alta (extremamente conservadoras e moralistas). Chegamos, então, a um objetivo estratégico fundamental da campanha: O Globo quer ser o guarda-chuva a acolher boa parte da produção de qualidade que se faz fora da mídia gorda, por pessoas que não precisam ser jornalistas para produzir textos, fotos, vídeos, entrevistas e outros materiais. Tenta, desta forma, manter seu poder concentrador no ambiente caótico, e em grande medida livre, da internet, onde as corporações de mídia tendem a perder ao menos parte de seu espaço e peso.
Muitos grupos, movimentos sociais e pessoas comuns já perceberam isso e usam a internet para se expressar e se informar sem passar pelos meios de comunicação corporativos. Mais uma vez, a mídia gorda contra-ataca.
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Jornalista, doutorando em Comunicação (UFF), historiador e professor; Rio de Janeiro, RJ