Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Divagações sobre a deontologia na profissão

Na sociedade da informação, a ética e a deontologia – que é o conjunto de normas e procedimentos de uma determinada categoria profissional – estão entre os assuntos prediletos de teóricos e de outros formadores de opinião. No espaço dos coleguinhas,não seria de outra forma e hoje é expressivo o volume de livros e palestras sobre temas que tratam de códigos de conduta das pessoas, valores morais e bons costumes, encantando a todos pela seriedade e boa intenção. O Código de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), no entanto, não tem dado as respostas necessárias aos desvios de muitos profissionais da comunicação jornalística e, na realidade, o problema não estaria no código em si, mas no processo.

Reformulado pela última vez em agosto de 2007, o código em vigor é bem completo e nada perde teoricamente para os similares norte-americanos, franceses ou alemães. E nesta edição mais recente houve avanços. Uma grande conquista foi inserida no capítulo IV, das relações profissionais, a chamada ‘cláusula de consciência’. Por sinal, esta cláusula é chamada de fato pelos especialistas de ‘obstrução de consciência’. O tópico dispõe em seu conteúdo que:

‘[…] A cláusula de consciência é um direito do jornalista, podendo o profissional se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam as suas convicções […]’

Punições ou sanções são desconhecidas

Teoricamente, um jornalista poderia se recusar a fazer uma reportagem que lhe fosse pautada. No caso, por exemplo, de ter sido guerrilheiro, ele teria a escolha, em tese, de se recusar a fazer uma entrevista sobre a evolução tecnológica do Exército tendo como fonte um oficial da reserva que servira no regime militar. Mas na prática é diferente porque caso se recuse a fazê-lo o patrão poderia demiti-lo sumariamente, já que o código deontológico dos jornalistas não tem força de lei, ao contrário dos seus congêneres na área da Medicina, Engenharia, Odontologia ou Direito. Mais eficiente seria o dispositivo se os proprietários de veículos de comunicação, ou mesmo alguns diretores-responsáveis, fossem efetivamente jornalistas. Não o sendo, essas pessoas não têm qualquer compromisso direto com o código deontológico dos profissionais de imprensa.

Certas profissões regulamentadas, por terem a respectiva autarquia (conselhos e ordens) que regula e fiscaliza os profissionais e sua ‘ética’, têm poder de lei. Talvez, tenha sido por isso que um grande número de interessados ficou contrário à criação do Conselho Federal de Jornalismo. Para certos empregadores, uma empresa jornalística, uma editora, ou emissora, antes de tudo é negócio, tanto quanto uma fábrica de sabonetes. Só depois vem o resto como responsabilidade social, formação de opinião e demais aspectos da imprensa. No caso do jornalista, há litígios éticos que muitas vezes precisariam alcançar a Justiça para serem solucionados.

A bem da verdade, o ‘Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros’ chega a ser uma utopia porque até hoje pouquíssimos jornalistas foram condenados por este mecanismo. O código atual parece mais um padrão, uma carta de princípios, do que um regimento disciplinar. Em décadas de profissão, este redator nunca teve conhecimento de qualquer colega que tenha sido punido ou sofrido qualquer sanção por intermédio do código da Fenaj. É de conhecimento que existem comissões de ética sérias nos sindicatos, inclusive com participação de membros que não pertencem à profissão, o que reduz o corporativismo, mas não há qualquer informação sobre processos éticos, pelo menos publicamente.

O problema da publicidade das fontes

A discussão poderia ir mais longe porque não há veiculação de anúncios nos grandes jornais comunicando sanções ‘éticas’ como se observa, por exemplo, nas categorias dos médicos, advogados ou engenheiros. Mesmo nas publicações da Fenaj e do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, por exemplo, poucas vezes foi verificado algo similar, pelo menos por enquanto. E as faltas éticas não são incomuns; pelo contrário, elas pululam diariamente nas páginas, telas e ondas sonoras. O real é que muitos jornalistas adoram falar em ética, mas sempre a dos outros.

Uma das razões da ineficácia da punição entre os colegas é muito simples. A maior sanção que um jornalista sofre numa grave falta ‘ética’ no Jornalismo é a expulsão do quadro de associados de seu sindicato. Sendo assim, há jornalistas que promovem o sensacionalismo e a boataria, exploram a miséria e desgraças alheias, há aqueles que pedem gentilezas em troca de boas notícias, incitam à violência ou usam a profissão em prol de benefícios exclusivamente pessoais e estariam efetivamente imunes, ‘eticamente’, por não serem sindicalizados. No máximo seriam impedidos de ingressar no sindicato dos jornalistas. O que fazer então contra os abusos? A única solução para certos casos estaria na Justiça, mas naturalmente nem todas as situações seriam suscetíveis de processos judiciais porque são inerentes à ética.

Há outras dúvidas também: se o código fala em apuração criteriosa dos fatos e na sua correta publicação, logoo emprego de aero-reportagens em matérias policiais seria aético ou não? Aproveitar conjecturas e rumores contrariaria a deontologia dos plumitivos? Apresentar a matéria à fonte antes de publicá-la seria antiético ou uma forma de evitar erros graves? E até que ponto a ocultação indiscriminadas das fontes (ou em background, e não em off-the record, como muitos classificam erroneamente) seria adequada ou não? E neste caso como quantificar isso adequadamente? Ajudar a dar publicidade a fontes que tenham interesse exclusivo apenas para autopromoção seria correto? São situações recorrentes que merecem reflexão das comissões de deontologia jornalística.

Um vácuo institucional

Há também novos aspectos como, por exemplo, competições e eventos formatados exclusivamente para programas esportivos que são comercializados com os patrocinadores nos mesmos moldes que um comercial de 30 segundos. Sendo assim, poderiam eles ser enquadrados simplesmente como uma cobertura esportiva tradicional, ou seja, jornalística? Há quem diga até que as transmissões esportivas não são rigorosamente jornalismo porque abraçam a emoção efusiva, a paixão e a tendenciosidade. Um grande jornalista da geração yuppie, nos anos 80, durante uma Copa do Mundo, chegou a defender que o narrador esportivo não poderia gritar um gol do Brasil emocionadamente por causa do seu compromisso com a imparcialidade.

Nesta fase pós-moderna, os setores esportivos da TV, ao que parece, também acharam que o melhor caminho de sua especialidade é fazer jornalismo com humor, como se micagens, gracinhas, piadas e brincadeiras valorizassem a precisão, a objetividade e clareza da informação. Este singelo redator não se considera um xiita, mas será que estão ‘valorizando, honrando e dignificando a profissão‘, como prega o código? Humorismo é humorismo, jornalismo é jornalismo. Não se misturam. A não ser em poucos casos na área opinativa como na crônica, na charge, comentário ou num suelto. A reportagem e a notícia não são espaços para isso.

A televisão talvez seja hoje a seara onde mais acontecem absurdos em relação ao nosso código de conduta. Há programas especializados nisso. Recordando o dispositivo da Fenaj ele dispõe que:

‘[…] o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, que deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação […]’

É sempre bom, portanto, analisar se profissionais de TV respeitam o código, salientando, porém, que nem todos são jornalistas profissionais, pois há também atores, modelos, radialistas, advogados, políticos, teólogos, jogadores de futebol, médicos, playboys internacionais e também oportunistas, naturalmente. Se esses apresentadores e entrevistadores não são jornalistas, não poderiam, a rigor, ser submetidos ao código deontológico da Fenaj. Há, deste modo, um vácuo institucional.

Derrubando fronteiras do jornalismo opinativo

Outro problema seria distinguir na TV o que afinal é jornalismo de entretenimento, tipificação que é mais clara no jornalismo impresso. Existem até alguns teóricos que já falam em infortainment, ou seja, informação mais entretenimento. Isso parece ser uma nova possibilidade estratégica de algumas emissoras de grande porte ao dar suporte a reality shows por meio do departamento de Jornalismo… A partir desta tendência, só faltava agora virem as novelas com mais novidades. Imagine então uma atriz interrompendo sua cena para ela mesmo apresentar uma notícia de algum fato importante em primeira mão… Seria uma revolução, não é? E a audiência, então…

Reflexões sobre a moral e bons costumes são extensas e levam a muitos questionamentos. O uso da mentira por repórteres investigativos para obter informações importantes; exploração da miséria alheia e dos sentimentos; abuso de informações sobre o sexo, o bizarro, e conflitos familiares; informar errado deliberadamente por algum interesse; exposição pública da identidade da fonte ou mesmo de fatos off-the record combinados durante a entrevista; não publicar retificações e erratas; não ouvir presumidamente fonte do outro lado da questão.

Se algumas dessas ações não devem ocorrer sob a ótica da ética, por que poucos profissionais são questionados efetivamente à luz do nosso código? Se o jornalista deve divulgar os fatos e as informações de interesse público (e não, interesse do público), por que fofocas maldosas, principalmente de celebridades, fotos invasivas do seu cotidiano, ou mentiras sobre a vida da pessoa não sofrem punições à luz da ‘ética’ mesmo havendo exageros, protestos e reclamos? Novamente, é preciso ir à Justiça para se fazer justiça? Talvez seja até por causa de ocorrências danosas que algumas fontes estejam se resguardando por meio de novas tecnologias, como os blogs. E aqui não se está falando apenas do caso da petrolífera que provocou polêmica com a novidade.

O marketing equivocado da notícia também pousou em algumas revistas semanais, que ultimamente valorizam mais a forma em detrimento do conteúdo. Isso é fácil de entender porque um título ou texto bem articulado com um pouco de tempero, ângulo correto, e uma ajeitadinha na medida certa, mesmo que mude um pouquinho o conteúdo vai manter o leitor mais atento que o formato convencional. Algumas dessas magazines definitivamente derrubaram as fronteiras do jornalismo opinativo e interpretativo e julgam, expõem pontos de vista, expressam juízos de valor, convicção, crença ou de ponderação, e até sentenciam no espaço onde só deveriam por princípio simplesmente informar. Mas não são apenas essas publicações que seguem nessa trilha perigosa.

A queda da regulamentação profissional

Os títulos capciosos de determinados jornais impressos remetem muitas vezes o leitor para uma notícia ou reportagem que nada tem a ver com o que disseram anteriormente, mas depois que o leitor foi enganado, ou melhor, ‘enganchado’ pelo lead, tudo já está feito. É bem possível que por isso no momento haja tantas meias-verdades na imprensa e a instituição esteja numa crise existencial e de credibilidade pouco vista anteriormente em sua história. A competitividade midiática cada vez mais acirrada e a chegada das novas mídias, que morderam fatias importantes do bolo publicitário, podem ter rebocado um grande número veículos de comunicação tradicionais para esta via sinuosa, estreita, deixando-os à beira do precipício.

Ainda que tenha lecionado em cursos de Comunicação Social e por 25 anos estudado o tema da regulamentação profissional dos jornalistas, este modesto autor não tem opinião formada sobre a obrigatoriedade do diploma. Mas talvez seja na academia o melhor espaço para o ensino e aprendizado do que seja efetivamente ética e deontologia profissional. Maria Immacolata Vassallo de Lopes, socióloga e professora da ECA/USP, disse certa vez, que talvez a maior necessidade da existência das escolas de Comunicação fosse o estudo e o debate da questão ética. Concordo com ela. A iminente queda da regulamentação profissional dos jornalistas vai servir para a categoria e a opinião pública verificar se a imprensa evoluiu eticamente depois de se ver escancarada e tornar-se mais democrática ao abraçar a todos que sabem escrever corretamente.

******

Jornalista, São Paulo, SP