Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Do político ao econômico, o avesso de um dizer

Não é a primeira vez que Ribeirão Preto desfila na primeira página dos jornais de circulação nacional; há poucos meses, na Folha de S.Paulo, a imagem de um canavial em chamas dava destaque a queimadas e efeitos prejudiciais que ela causa ao meio ambiente e à saúde. Na edição de domingo (18/9), uma nova cena sobre o mesmo assunto retorna: a trabalhadora rural, fotografada do alto e com a cabeça baixa, afia o facão usado no corte de cana. Aparentemente, o discurso do jornal denuncia algo que está fora da ordem, que reclama protesto e, assim, que merece ser tratado como afronta a leis de direito e à dignidade humana, de tal modo que seria inaceitável a sua continuidade.

Nessa direção, a coleta de queixas de bóias-frias, depoimentos de autoridades ambientais e acadêmicas, as fotografias de cortadores de cana, no ônibus, a caminho do trabalho, a voz do integrante do Comitê Permanente de Nutrição da ONU e da Pastoral do Migrante instalam outros sentidos que não aqueles marcados e naturalizados para a Capital Nacional do Agronegócio, com eventos como a Agrishow e a Fenasucro. Também indicam que as contradições e fissuras da suposta pujança da região, embora silenciadas pelas de muitos zeros, não desaparecem e servem para tornar ainda mais pesada a vida dos trabalhadores e a concentrar ainda mais a riqueza, os acessos e os poderes.

Pouco são os relatos jornalísticos em que o corte da cana é visto pela ótica de quem acorda às quatro da manhã, desfere quase 10 mil golpes de podão ao dia, corta em média 12 toneladas diárias de cana, tem seus olhos navalhados pela palha, perde alguns dedos ou partes inteiras em mutilações absurdas, respira fuligem e ganha, em média, 600 reais por mês. Interessante anotar que, na referida reportagem, os bóias-frias que falam têm identidade e direito a voz: ‘É um trabalho cansativo demais. Já soube da história de um cortador que morreu no campo abraçado à cana. É triste demais’, afirma Maurise Maria Bispo.

Os discursos e o grito

No entanto, chama atenção e causa estranheza o caderno no qual a reportagem foi alocada. Ao invés de ser tema nacional, de caráter político, e ocupar um lugar relevante no caderno A, espaço destinado à polêmica e à discussão de questões importantes para a nação, ela aparece no caderno Dinheiro da Folha (pág. B 6), em que a tônica é o tratamento dado a temas ligados a valores, cotação de moedas, investimentos, indicadores econômicos, estudos sobre aplicações, enfim, mercado financeiro. Tal deslocamento da área política para a econômica cria o efeito imaginário de que o problema em questão não é tão grave quanto parece, posto que não envolve crime nem afronta aos direitos trabalhistas. Tampouco merece a atenção nacional, pois está circunscrito ao campo dos investimentos, e não dos direitos.

Colocada nesse lugar, a reportagem, que em leitura literal poderia indicar efeitos de denúncia, passa a funcionar de modo a promover os sentidos de produtividade, capacidade produtiva, competitividade, otimização de resultados, uso da tecnologia para aumento da produção, trabalhador ágil com grande capacidade produtiva, o que pode ser lido pela manchete e linha fina: ‘Tecnologia faz bóia-fria trabalhar mais – Para manter emprego, cortador de cana precisa elevar a produção; ONU investigará se 9 mortes ocorreram por exaustão’.

Essa diretividade dos sentidos, já condensados pela voz do jornal, também é marcada pelo público-alvo virtual desse caderno, lido em geral por pessoas de negócios, empresários, ruralistas, interessados em assuntos econômicos que engendram a sua lógica a partir de números e indicadores matemáticos e que não necessariamente levam em conta temas como a exploração da mão-de-obra, as aviltantes condições de trabalho, a qualidade de vida dos trabalhadores, a conjuntura sócio-histórica em que homens vendem (e muitos não têm nem a quem vender) a sua força de trabalho etc. A frieza e o crescimento dos gráficos financeiros e das tabelas de investimento são proporcionais à exploração dos trabalhadores e ao lucro sugado do trabalho deles.

A reportagem citada calha de ser publicada dois dias antes da abertura da Fenasucro, para a qual está prevista a presença do presidente Lula e de sua corte ministerial. Certamente discursos entusiasmados sobre exportações, recordes de produção, implementos modernos para o setor e avanços tecnológicos para o plantio e a colheita, mais uma vez, serão declamados. A produtividade tentará silenciar a exclusão e a concentração de riqueza; tentará, mas não conseguirá, porque as nove mortes de bóias-frias ocorridas em 2004, os movimentos sociais do campo, as organizações de defesa do meio ambiente e, sobretudo, a face envelhecida precocemente e pobre e desesperançada dos trabalhadores rurais, tão presente nos canaviais, continuarão a soar como o grito de Munch, grito daqueles que são tratados como número, até quando o jornal parece denunciar uma injustiça.

******

Professora da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, SP