Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Do sensacionalismo nasce a barbárie

Hoje acabaram-se toda a minha capacidade de tolerância e compreensão face à liberdade de imprensa e todo o meu conceito sobre o assunto, ainda que mal formado, posto que não é de meu costume e princípio dar atenção à insuportável exploração pela mídia da banalidade e da desgraça alheia, ora criando transtornos irreversíveis na vida de pessoas comuns, ora simplesmente destruindo suas vidas, famílias e patrimônios.


Aos fatos: vimos por semanas e semanas no noticiário de todo o país, inclusive no horário nobre da TV brasileira, o caso da mãe que em Taubaté (SP) envenenou o filho com a administração de cocaína no leite da mamadeira. Agora, estarrecido, leio que as informações não tinham fundamento, não existia cocaína alguma. E a mãe, rotulada de ex-viciada, psicótica e alienada, presa e surrada por colegas de cela, perdeu parte da audição depois de ter um dos ouvidos perfurado por uma caneta, introduzida pelas detentas como forma de vingança e repúdio ao ato da mãe – afinal inocente e totalmente fragilizada pela perda irreparável de seu bebê, a perda de um filho.


A única palavra


Com isso não se brinca! Não achei uma forma de ignorar mais um bizarro fato do cotidiano deste país de sensacionalismo e circo, e por isso escrevo para a redação deste Observatório da Imprensa. Não consigo imaginar como seria possível aos responsáveis pela difusão e exploração de um caso tão delicado e trágico como este chegarem a suas casas com a sensação de dever cumprido em nome da imprensa e da liberdade que lhes foi dada.


Justiça é a única palavra que vem à cabeça: que a justiça seja feita. A mim, como mero espectador deste circo, só me resta sonhar que um dia não tenha que ser cúmplice indireto de tamanha barbaridade.


***


Laudo inocenta mãe acusada de matar filha


Laura Capriglione # copyright Folha de S.Paulo, 6/12/2006


Foi colocada em liberdade ontem [5/12], depois de 37 dias de prisão, a jovem Daniele Toledo do Prado, 21, acusada injustamente de envenenar a própria filha, Victória Maria do Prado Iori Camargo, de apenas um ano e três meses, com cocaína colocada na mamadeira da menina.


Laudo definitivo do Instituto de Criminalística provou que não era cocaína o pó branco encontrado na mamadeira. Também deu negativo para cocaína o exame feito no pó branco encontrado na boca da criança e recolhido no hospital.


Caiu assim a única evidência que incriminava Daniele, um laudo provisório que a levou à prisão logo que constatada a morte clínica da menina, às 10h40 de 29 de outubro. O alvará de soltura foi concedido pelo juiz da Vara do Júri e da Infância e Juventude de Taubaté, Marco Antonio Montemor.


‘Eu nem tinha ainda conseguido entender o que significava aquele pííííííííí do oxímetro [que indicava a ausência de pulso], a correria dos médicos para ressuscitá-la, o corpinho inerte da Victória ainda com o tubo saindo da boca, quando a doutora Érika me arrastou pelo braço para a sala onde estava minha filha, gritando: ‘Olha o que você fez, sua assassina. Encara o que você fez, monstro’.’


Dali, sem tempo para chorar a perda da filha, Daniele foi levada para a cadeia pública de Pindamonhangaba. ‘Joga o bicho da mamadeira para cá.’ Essa foi a senha para o início da surra que deixou Daniele com a mandíbula quebrada, hematomas no corpo e lesões na cabeça, por causa das pancadas contra as grades da cela. Nada menos do que 18 presas participaram da ação contra a jovem.


‘Uma presa enfiou uma caneta no meu ouvido e já ia dar um soco para que entrasse até o talo, quando outra lhe pediu que não fizesse isso. Então, ela quebrou a caneta e metade ficou dentro’, lembra Daniele. Apesar dos gritos, o socorro só chegou duas horas depois, ao amanhecer, quando a jovem foi levada inconsciente para o pronto-socorro.


Doença estranha


Daniele e sua filha eram bem conhecidas no Hospital Universitário de Taubaté. A menininha tinha uma doença até hoje não diagnosticada, que a deixava inconsciente por várias horas. A criança tomava de quatro a cinco remédios diariamente, inclusive um para evitar convulsões, composto por pó branco. Por causa do agravamento de seu quadro clínico, os últimos quatro meses de vida de Victória foram um entra-e-sai do hospital, com várias internações na UTI.


No dia 8 de outubro, a filha internada, Daniele foi estuprada dentro do hospital. Bastante machucada e em estado de choque, foi atendida lá mesmo. Segundo o delegado-seccional de Taubaté (130 km de SP), Roberto Martins de Barros, um laudo confirma a violência sexual. Na delegacia, Daniele acusou, como autor do crime, um quintanista de medicina, do corpo de residentes do hospital.


‘Ele me ameaçava e dizia, enquanto me estuprava, que sabia que eu precisava do hospital para cuidar da minha filha’, lembra Daniele.


Depois da denúncia contra o residente, a moça teve de ir à delegacia outra vez, antes da morte da filha. Dia 19 de outubro, médicos do hospital denunciaram ter encontrado um pó branco suspeito no pescoço de Victória. Sem autorização da mãe, foram recolhidas amostras de sangue e de urina da criança. Suspeita: cocaína. O resultado deu negativo.


A última alta de Victória foi no dia 25 de outubro. Mas a menina podia voltar a ter uma de suas crises a qualquer momento. Foi entregue a Daniele uma carta de encaminhamento assinada por duas médicas. Se o quadro clínico da menina piorasse, ela tinha autorização para ir diretamente ao Hospital Universitário.


No dia 28, a criança teve nova crise e a mãe, como combinado, levou-a ao hospital. Não quiseram recebê-la. A mãe deveria levá-la primeiro ao Pronto-Socorro Municipal, onde chegou às 20h30.


A mãe denuncia que, mesmo inconsciente, a criança ficou sem atendimento até as 4h25, quando recebeu glicose em soro. Nesse momento, foi coletada a substância branca da língua da criança (a mesma que o exame preliminar do Instituto de Criminalística afirmava ser cocaína). Às 10h40, Victória morreu.


Assim que foi libertada, ontem, a mãe de Victória abraçou os familiares que a esperavam do lado de fora da Penitenciária de Tremembé (a 138 km de SP). Chorou e, depois, conforme havia pedido à advogada Gladiwa de Almeida Ribeiro, foi para o cemitério visitar o túmulo da menina.


Ela pretende entrar na Justiça para saber se a filha morreu por omissão de socorro ou por morte natural. Também quer punir o estuprador que a vitimou. ‘Eu tenho o direito de saber exatamente do que a minha Victória morreu.’ (Colaborou o ‘Agora’)

******

Servidor público e compositor, Franca, SP