Quando Tarso Genro ordenou a captura e deportação dos pugilistas cubanos, nos Jogos Pan-Americanos de 2007, converteu-se em herdeiro político legítimo de Alfredo Buzaid, seu antecessor no Ministério da Justiça nos tempos de Garrastazu Médici. Não há surpresa na sua iniciativa de suprimir do projeto de lei destinado a frear a farra dos grampos uma cláusula que protegia o direito jornalístico de divulgar o conteúdo de escutas vazadas de investigações policiais. Nem na sua negativa em admitir a intenção do governo de restringir a liberdade de informar. Afinal, ninguém esqueceu que o ministro do Arbítrio substituiu, ex post facto, o termo de deportação dos pugilistas por um documento de repatriamento.
Genro não está só na ofensiva liberticida. O ministro Nelson Jobim defendeu em depoimento ao Congresso a criminalização da divulgação de escutas pela imprensa e articulou com seu colega Franklin Martins, o ministro da Verdade Oficial, a retirada da cláusula de proteção do trabalho jornalístico. Os três se alinham com o presidente da República, que explicou: ‘Liberdade de imprensa não pode pressupor que alguém possa roubar informações, e elas possam ser divulgadas sem que a pessoa que tenha roubado seja punida.’
A frase de Lula só aparentemente carece de sentido. Um dos deveres clássicos da imprensa é precisamente ‘roubar informações’ de interesse público e divulgá-las, mas o presidente sabe que, no caso, não há nenhum ‘roubo’: são os autores de escutas – legais ou ilegais – que as vazam, e nem sempre primariamente para jornalistas. Atrás da esperteza presidencial se esconde uma doutrina sobre a função da imprensa. Referindo-se ao episódio do grampo no presidente do STF, Gilmar Mendes, Lula descerrou o véu: ‘Era fácil encontrar quem fez o grampo se o jornalista que fez a matéria dissesse quem é o cara.’
As obras e a fé
Pouco importa, aqui, que nem sempre o jornalista saiba ‘quem é o cara’. Lula está dizendo que, em nome do bem público, a imprensa deve estabelecer uma parceria com o Estado. É precisamente esta doutrina que fundamenta a criminalização da divulgação de escutas. A tríade de ministros em revolta anticonstitucional almeja transformar a imprensa em linha auxiliar da polícia, impondo aos jornalistas, sob as penas da lei, a missão de ocultar informações ‘sensíveis’.
Nem o presidente nem seus auxiliares parecem interessados no fato óbvio de que a ruptura do sigilo da escuta não se dá na hora da publicação de seu conteúdo, mas antes, quando arapongas a serviço de interesses criminosos põem os grampos em circulação numa rede mais ou menos ampla. Entretanto, ao tentarem manietar a imprensa, eles prestam um favor inestimável à indústria da chantagem, assegurando que as informações com as quais opera transitarão numa esfera restrita, fora do conhecimento do grande público.
O fascínio pela arapongagem atingiu um ápice histórico, algo que diz volumes sobre a putrefação das instituições. São, no Brasil, 407 mil escutas legais, numa orgia patrocinada pela perigosa associação entre juízes e policiais. Quantas são as escutas clandestinas, mas conduzidas por agentes públicos? Entre os cidadãos, muitos crêem ingenuamente que a destruição em massa da privacidade serve à finalidade de combater a corrupção. Mas o aterrador é constatar a difusão da leniência – ou, no limite, de uma nítida fé liberticida – entre os que, por dever de ofício, deveriam saber mais.
O historiador Boris Fausto escreveu neste espaço que ‘os fins não justificam os meios’, mesmo porque estão entrelaçados, mas abriu uma janela de tolerância em nome do imperativo de ‘combater o mundo submerso’. Os colunistas Fernando de Barros e Silva e Marcelo Coelho, da Folha de S.Paulo, preferiram atirar naqueles que recordam o valor de artigos exóticos como as liberdades individuais. O primeiro, em linguagem reminiscente das ditaduras salvacionistas, sugeriu que os princípios democráticos servem ‘para preservar privilégios e perpetuar a impunidade’. O segundo, num exercício de delinqüência intelectual, decretou que ‘uma autoridade grampeada é uma autoridade mais transparente, mais submetida ao controle da sociedade’. Os católicos buscam a salvação pelas obras e os protestantes, pela fé. Coelho propõe a salvação pela polícia, que parece figurar na sua mente como o equivalente da ‘sociedade’.
Faces complementares
Os agentes que escutam nas fímbrias das linhas telefônicas não são, jamais, os ouvidos da ‘sociedade’ – e, no Brasil de hoje, nem sequer podemos ter a certeza pouco tranqüilizadora de que são os ouvidos do Estado. O ‘mundo submerso’, esquece-se com freqüência, não é um universo apartado do mundo oficial, nem do subconjunto dele que é o mundo policial. Mas como é possível esquecer isso quando a guerra empresarial pelo controle do setor de telefonia vinca os altos círculos da elite política e se refrata indiretamente numa Polícia Federal em via de balcanização?
‘Quem não deve não teme’, diz o ditado de quem não teme pois não sabe o que deve temer. O sigilo telefônico, como o bancário, não nasceu para proteger criminosos, mas para restringir o poder de um ‘mundo submerso’ imbricado no mundo oficial. O seu sentido de fundo é garantir aos cidadãos e, inclusive, a autoridades a possibilidade de desafiarem os governantes, mesmo quando têm segredos profissionais ou pessoais valiosos – e até se cometeram ilegalidades.
A liberdade de informar tem um sentido paralelo. O chão sobre o qual se ergue é formado pela desconfiança na sabedoria do governo – isto é, de qualquer governo. O paradigma de Lula, e de seu cortejo de ministros, é o inverso. Eles desconfiam da sabedoria dos cidadãos e preconizam a salvação pelo Estado. A liberdade do araponga e a censura à imprensa formam as faces complementares de sua teoria da comunicação social.
Não seria tempo de incorporar uma Primeira Emenda à nossa Constituição?
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Sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP