Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Do xadrez ao besteirol

O Watson é um computador da IBM que concorreu no Jeopardy, um programa muito popular de perguntas da TV norte-americana no qual os participantes devem apertar rapidamente um botão caso saibam a resposta correta. No Brasil, um show similar, mas só com pessoas, foi apresentado na década de 1950, O céu é o limite, oferecendo prêmios em dinheiro. O Watson massacrou os concorrentes humanos, todos campeões dos anos anteriores, respondendo coisas de conhecimento geral e trivialidades. Anos antes, em 1997, o Deep Blue, também outro computador da IBM, já havia derrotado o campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov.

A diferença, no caso da derrota de Kasparov, é que no xadrez as regras são lógicas e todas as táticas estavam carregadas na memória do computador, dando-lhe vantagem. Já Watson respondeu sobre banalidades da cultura, o que implicou programação muito mais complicada e um ‘comportamento’ mais perto do humano. Watson é formado por 90 servidores com 2.880 processadores. Ele não está conectado ao Google, o que só atrapalharia. Em vez disso, tem na sua memória milhões de documentos selecionados (sem o lixo do Google), dicionários, enciclopédias e livros de conhecimentos triviais, de histórias de costumes a futilidades em geral. Baseado na pergunta, Watson processa em milésimos de segundos milhões de dados em busca de similaridades, com um algoritmo que indica a porcentagem de probabilidade do que poderia ser a resposta correta. No programa, Watson conquistou 77.144 pontos, contra 24.000 do segundo e 21.600 do terceiro colocado.

Watson vai estrear na área médica

Dias depois, Watson teve uma recaída e perdeu para um concorrente veterano, que há 35 anos ganhou o concurso cinco vezes consecutivas. Rush Holt, um político profissional que atualmente é deputado republicano, acertou, por exemplo, que hipofobia é medo de cavalos, informação que Watson não encontrou na sua memória. Na etapa seguinte, da qual participaram outros políticos, no entanto, Watson ganhou no combinado, fazendo 40.300 pontos contra 30.000 da soma dos humanos. Na pergunta ‘O que é o amor?’, Watson arrancou gargalhadas da plateia com a resposta vencedora: ‘É uma insanidade temporária curável com o casamento.’ Ele achou essa resposta no livro Dicionário do diabo, de Ambrose Bierce. Por outro lado, ele confundiu a maluquete Paris Hilton com o prédio da rede hoteleira na capital francesa.

O quase chamuscado Holt evitou vangloriar-se da vitória ao ser aplaudido na Câmara dos Deputados. Sabiamente, ele alertou: ‘Estou orgulhoso, mas é crucial a educação em matemática e ciências para o futuro da nação.’ O representante da IBM, citado pela revista Time, completou o raciocínio dizendo que a tecnologia de Watson era um salto, e não apenas um exercício de trivialidades. Para ele e a IBM, o computador é uma poderosa ferramenta para ajudar na decisão de questões complicadas que envolvam o processamento de milhões de dados em tempo de trabalho muito curto, como exigem situações de emergência.

Fora da ribalta, Watson já arrumou emprego em uma área muito mais séria. Com milhões de diagnósticos e sintomas médicos em sua memória, ele vai estrear na área médica, prometendo ser mais eficiente – no que diz respeito a diagnóstico de doenças raras – que o Dr. House do seriado de TV. Brevemente, via internet, ele vai estar nas melhores salas de emergência dos melhores hospitais. Afinal, o trunfo de um bom médico é sua longa experiência, mas todos eles têm memória limitada. A combinação de inteligência, experiência e especialização de milhares de médicos é, certamente, muito mais poderosa.

Compra e venda de ações por supercomputadores

Também os grandes escritórios de advocacia dos EUA já estão de barbas de molho, segundo anuncia o veterano jornalista de tecnologia John Markoff. Ele conta, num artigo no New York Times, que exércitos de juristas especializados em pesquisas de legislação, uma profissão muito bem paga, estão com os dias contados, prontos para se aposentar com a chegada de um software relativamente barato. Em janeiro, a empresa especializada Blackstone Discovery, de Palo Alto, Califórnia, analisou e classificou em poucas horas, por 100 mil dólares, um milhão e meio de documentos relevantes num caso, na ordem de importância. Anos antes, em 1978, registra o jornalista, perícia semelhante gastou meses, com advogados trabalhando em regime de horas-extras a um custo de mais de 2 milhões de dólares. Calcula-se que a busca eletrônica com algoritmos tenha reduzido a necessidade para apenas um jurista pericial em casos que antes empatavam nada menos que 500 deles.

Para piorar, empresas que contrataram esses serviços resolveram testar o desempenho das enormes equipes desde a década de 1980, usando a mesma documentação disponível. Foi um desastre. Apenas 60% do trabalho foi considerado preciso e acurado. ‘Pense em quanto dinheiro foi gasto, com resultados pouco melhores do que decidir no cara ou coroa’, comentou um analista no New York Times. A Blackstone usa algoritmos de inteligência artificial (IA) tão avançados que não se baseiam na busca de palavras-chave, como faz o Google. E pode deduzir padrões de comportamentos que escapariam aos analistas humanos.

Antigamente, o medo de a automação causar desemprego limitava-se aos trabalhos repetitivos e mecânicos, de baixa qualificação, mas agora a ameaça espalha-se por todas as gamas de profissões. No setor financeiro de Wall Street, por exemplo, a quase totalidade de decisões de compras e vendas de papéis já é feita por supercomputadores em frações de segundo ao longo de todo o pregão. Não há humanos para concorrer com eles.

Mestres na arte da dissimulação

Trata-se de uma tendência para a qual a humanidade ainda não tem um plano B, nem mesmo um A. Segundo um desses visionários, Marshall Brain, o criador do popular site HowStuffWorks (Como tudo Funciona, no Brasil), existem fortes razões para temer a esperada proliferação dessas máquinas. ‘Em 2030, eles vão ocupar quase a metade dos empregos nos EUA’, previu Marshall para a revista Business Week. Eles já são considerados mais eficientes em cargos de decisão de RH (Recursos Humanos), pois não se deixam levar por emoções baratas e subjetivas dentro das empresas.

Markoff, o jornalista do New York Times, reuniu opiniões pouco esperançosas sobre essa questão. David Autor, professor de Economia no MIT (Massachusetts Institute of Technology), é piedoso, mas pessimista. ‘Não há razão para acreditar que a tecnologia aumente o desemprego. A longo prazo, vamos inventar coisas para as pessoas fazerem.’ O mais grave, especula ele, ‘é se as mudanças tecnológicas vão levar a empregos melhores. A resposta é não’.

Nos próximos dez anos, além do reconhecimento da fala, as máquinas de gerações sucessoras de Watson e Deep Blue vão entender o que está sendo dito pelos humanos – ou então simular um entendimento e respostas capazes de ludibriar até os mais inteligentes humanos. As novas gerações de programas de computador baseadas em Inteligência Artificial vão, no mínimo, se tornar mestres da dissimulação e do fingimento.

A vitória de Watson não se deve apenas ao esmagador poder computacional de supercomputadores de processar dados e documentos, e sim, ao projeto de Inteligência Artificial na área de software. Há bastante tempo, os programadores de IA abandonaram as tentativas de produzir programas que imitassem a inteligência do cérebro humano. Até porque ela é imprecisa e tremendamente inadequada para muitas coisas. A IBM considera o Watson um feito de engenharia, mais do que iluminações de processos cognitivos. Mesmo que nas próximas décadas os computadores não consigam ainda pensar como o cérebro humano, eles já viraram grandes mestres na arte da dissimulação, capazes de enganar a maioria dos humanos. Infelizmente, o cérebro humano ainda não sabe como lidar com esse desafio e nem quais são as consequências dessa evolução. A menos que se acredite nos roteiros de cinema da série de exterminadores do futuro, num mundo em que as máquinas tomaram o poder. Há pelo menos um consolo: provavelmente as máquinas não vão querer nos comer.

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Jornalista