No dia 17 de abril de 1996 a imprensa brasileira registrou um dos episódios mais violentos na história de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): o massacre, em Eldorado dos Carajás, foi manchete nos principais meios de comunicação de todo o país e do mundo. A ação resultou na morte de 19 sem-terra, além dos 69 trabalhadores rurais e 12 policiais militares que ficaram feridos. A manifestação reuniu 1,5 mil sem-terra na rodovia PA-150, no Pará, em protesto contra a demora do governo federal em assentar suas famílias.
Naquele conflito, o então governador do Pará, Almir Gabriel, mandou a Polícia Militar (PM) desocupar a estrada no sul do estado. Os policiais militares portavam revólveres e metralhadoras. Depois de duas horas de confronto, a operação resultou na morte de 19 sem-terra e 51 feridos. Na ocasião, o laudo da perícia comprovou que os policiais militares dispararam primeiro contra os sem-terra, que reagiram atirando paus e pedras para resgatar dois militantes baleados.
A repercussão do episódio foi motivada pela presença de dois jornalistas que faziam a cobertura do confronto. Enquanto a polícia disparava contra os manifestantes, um deles – o cinegrafista Osvaldo Araújo, do SBT – registrava as imagens em sua filmadora. A repórter Marisa Romão, da TV Liberal, também testemunhou o conflito e precisou se proteger do tiroteio junto com o colega e os sem-terra num casebre. A força das imagens causou grande impacto na opinião pública. Posteriormente, as imagens foram exibidas pela imprensa nacional e internacional o que gerou uma grande comoção.
Novo modelo econômico
Apesar da grande repercussão do massacre, o julgamento dos responsáveis pela morte dos sem-terra resultou na absolvição dos acusados. O Movimento resolveu protestar diante da impunidade no uso da violência para conter os sem-terra. Na véspera de completar um ano da tragédia no Pará, os sem-terra organizaram a 1ª Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça Rumo a Brasília, sede do governo federal. A mobilização consistia em acampamentos, à beira da estrada e em praças públicas, ocupações de terras e de órgãos governamentais, marchas, jejuns coletivos e declarações públicas que ganharam destaque na mídia.
O mês de abril tem significado especial na luta dos sem-terra, não só pela ocorrência do massacre em Eldorado dos Carajás, mas porque é nessa época que o Movimento intensifica suas ações. O período favorece a luta dos sem-terra que disputam não somente a desapropriação de terras, mas também recursos para a agricultura. A cor vermelha, por sua vez, está na bandeira do Movimento e representa o sangue que ‘corre nas veias e a disposição de lutar pela reforma agrária e pela transformação da sociedade’ [informação disponível em www.mst.org.br].
Em 2007, o MST intensificou suas ações também no mês de setembro com a jornada nacional de lutas. O Movimento organizou protestos e ocupações de prédios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pedindo o assentamento de 150 mil famílias acampadas em todo o país. Reivindicava, ainda, a adoção de um novo modelo econômico visando à realização da reforma agrária.
Notícia de ‘agência’
As manifestações promovidas pelos sem-terra foram equivocadamente chamadas pela imprensa de ‘Setembro Negro’. A infeliz associação remeteu ao mês de setembro de 1971, quando surgiu a organização terrorista Setembro Negro (Ailul al Aswad, em árabe) criada por membros líderes da Organização pela Libertação da Palestina (OLP). O nome se refere ao setembro de 1970, quando o rei Hussein, da Jordânia, ordenou que a OLP fosse expulsa de seu país com extrema brutalidade.
O Setembro Negro apareceu pela primeira vez na mídia com o assassinato do primeiro-ministro jordaniano Wasfi al-Tal, em 28 de novembro de 1971, no Cairo. Depois desse episódio, novos ataques foram registrados. O mais famoso deles aconteceu no ano de 1972, contra um grupo de atletas olímpicos israelenses. Recentemente, essa história foi relembrada no cinema com o filme Munique.
Diante da associação das ações do MST à organização terrorista palestina, a assessoria de comunicação do Movimento encaminhou nota para a imprensa informando: ‘Somos um movimento social pacífico, com legitimidade na sociedade pela luta em defesa da reforma agrária. Não autorizamos a associação indevida do nosso nome com grupos armados, o que contribui para a criminalização das famílias rurais sem-terra.’ A nota foi publicada no jornal Correio Braziliense, que alegou ter retirado a expressão de notícia produzida por ‘agência’.
Papel da imprensa
O uso de expressões tais como ‘Abril Vermelho’ e ‘Setembro Negro’ para identificar as lutas por reforma agrária reforçam associações negativas à imagem dos sem-terra e à sua luta. Além dessas expressões, a mídia utiliza com freqüência o termo ‘invasão’ para descrever as ocupações do MST. A escolha dessas expressões revela as prioridades definidas pela mídia em sua cobertura jornalística e que influenciam a opinião pública (MCCOMBS E SHAW, 1993 apud TRAQUINA, 2000, p.132). Na perspectiva da Teoria do Agendamento, até ‘o nome atribuído a um assunto pode influenciar o destaque de certos pontos de vista e a distribuição da opinião pública’.
A cobertura jornalística de um movimento social (idem), por exemplo, pode selecionar entre um conjunto de estratégias de enquadramento aquelas que bem entender. As notícias podem falar dos problemas sociais, criticar propostas alternativas para lidar com os problemas e concentrar-se nos esforços de militantes e governantes para resolver a questão. É possível inferir que, sejam quais forem os atributos de um tema apresentado na agenda jornalística, suas conseqüências para o comportamento da audiência devem ser levadas em consideração.
As construções sociais apresentadas pela imprensa a respeito do MST podem levar a transformações significativas na sociedade democrática. Até o presente momento, a imprensa brasileira tem dado demonstrações de que condena não somente as reivindicações do MST, como também suas estratégias de luta. O uso da expressão ‘Setembro Negro’ reforça o preconceito da mídia quando aborda a luta por reforma agrária.
O Movimento dos Sem Terra precisa percorrer uma longa estrada para repercutir sua luta no campo e nas cidades. A imprensa, por sua vez, deve refletir sobre o seu papel social. Para Luiz Martins (2000), a grande mudança aconteceria a partir do momento em que a imprensa abandonasse o discurso de que o seu papel social ‘termina com a publicação das notícias’. Não se trata do engajamento pela causa dos sem-terra, mas de responsabilidade na abordagem dos fatos.
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Jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília, Brasília, DF