Na quinta-feira (28/1), o Jornal Nacional protestou contra a utilização de dois pesos e duas medidas na política externa brasileira. Segundo o telejornal, o Brasil apoiou o golpista Manuel Zelaya e se recusa a atacar o autoritário Hugo Chávez. Os jornalistas globais silenciaram sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos porque os telespectadores ficaram cansados da ladainha acerca de uma suposta violação da liberdade de imprensa.
Quem usa dois pesos e duas medidas: o governo ou o Jornal Nacional?
Apesar das lamentações, a política externa brasileira tem sido absolutamente consistente. Zelaya foi regularmente eleito e seu mandato foi interrompido por um golpe militar. O Brasil não poderia deixar de dar-lhe apoio. Tanto a ONU quanto a OEA afirmaram de maneira inequívoca e veemente que a deposição do presidente de Honduras atenta contra a ordem internacional. Portanto, seria absolutamente contraproducente o Brasil ficar ao lado dos golpistas. Isto o Brasil fazia nos tempos da ditadura, a mesma ditadura que foi apoiada diligentemente pelo falecido Roberto Marinho.
Gostemos ou não, Chavéz é o legítimo presidente da Venezuela. Em razão do princípio da autodeterminação dos povos, a maioria dos venezuelanos tem o direito de escolher livremente qual será a ordem econômica e política do país. O Brasil não tem legitimidade para interferir na política interna da Venezuela, pois aquele país tem um regime constitucional legítimo que prevê eleições periódicas, eleições estas que foram realizadas de maneira absolutamente correta.
Sonegação de informações relevantes
O Itamaraty não está usando dois pesos e duas medidas. Portanto, podemos concluir que a Rede Globo não gosta da atual política externa brasileira. Não vou entrar no mérito das preferências globais. Mas não posso deixar de registrar que o Brasil tem Constituição e segundo esta a legitimidade para a condução da política externa é do Itamaraty, e não do Jornal Nacional.
No meu modesto modo de entender, quem utilizou dois pesos e duas medidas foi o próprio JN, que atacou ferozmente o que considerou uma interferência indevida na mídia venezuelana. Entretanto, os telespectadores não foram informados acerca de quais são as regras legais válidas a que estão submetidas as redes de TV na Venezuela.
Esta omissão é imperdoável. Sem conhecer as regras aplicáveis àquele país, ninguém pode avaliar se Hugo Chavéz agiu ou não de maneira autoritária. Afinal, gostemos ou não, ele pode apenas ter utilizado prerrogativas que lhe foram atribuídas pela legislação. Como podemos considerar ilegítima uma interferência na mídia que foi feita dentro da Lei? Desde quando a Venezuela tem a obrigação de adotar os mesmos padrões legais que o Brasil?
Além da omissão citada, há um outro detalhe importante. O JN reclamou da falta de liberdade de imprensa na Venezuela, mas utilizou a liberdade de imprensa que tem no Brasil para sonegar informações relevantes aos telespectadores brasileiros. Isto é correto? Onde começa e onde termina a liberdade de imprensa no Brasil?
Empresa vai conseguir o que não quer
Os cidadãos brasileiros têm direito constitucional à informação. Mas isto não quer dizer que tenham direito a ‘qualquer’ informação. Informação é aquilo que reduz a incerteza, razão pela qual uma informação deformada ou lacunosa deve ser considerada uma ‘não informação’. Por via de consequencia, no Brasil a mídia tem o dever de divulgar informações precisas, inteiras, detalhadas e de evitar produzir deformações ou omissões deliberadas ou não intencionais.
O JN tinha condições de consultar e divulgar a legislação venezuelana acerca da mídia para permitir aos cidadãos brasileiros avaliar e julgar as decisões de Chávez? Eu penso que sim. A Rede Globo tem correspondentes na Venezuela e o governo venezuelano disponibiliza on-line sua legislação (ver aqui).
As deformações e omissões divulgadas pela mídia impedem os cidadãos de exercer plenamente a cidadania. Foi exatamente isto que ocorreu no dia 28. O JN sonegou informações acerca da legislação venezuelana, informações que estavam à sua disposição. Não me parece absurdo concluir que é antiético defender a liberdade de imprensa através da difusão do erro. Que liberdade de imprensa a Rede Globo defende?
É irritante a insistência da Rede Globo em defender a RCTV impedindo os brasileiros de saber exatamente se Hugo Chávez poderia ou não suspender o sinal daquela emissora. O comportamento da Rede Globo me deixa cada vez mais curioso. Qual a composição acionária da RCTV? A Rede Globo está defendendo a liberdade de imprensa ou seus interesses empresariais na Venezuela?
O episódio provocado pela omissão do JN é sério e sugere um debate mais profundo sobre questões relevantes. Quais os limites da liberdade de imprensa? Pode uma empresa de mídia deformar ou sonegar informações relevantes? A liberdade de imprensa possibilita as empresas de mídia defender seus interesses comerciais? Uma Rede de TV brasileira tem legitimidade para colocar os cidadãos contra uma política governamental adequada levada a efeito pelo órgão governamental legítimo?
Deste jeito, a Rede Globo vai conseguir exatamente o que não quer. Ali Kamel está dando combustível para os defensores das normas do PNDH que pretendem frear os abusos midiáticos praticados pela mídia brasileira.
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Advogado, Osasco, SP