Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Dois pesos e duas medidas

Quando na quarta-feira (9/6) os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte de justiça do Brasil, decidiram pela não extradição do ex-ativista de esquerda italiano Cesare Battisti – e ainda de quebra determinaram a libertação do mesmo, que se encontrava preso desde 2007 no presídio da Papuda, em Brasília –, muito se comentou, muito se criticou, um alvoroço tomou conta da imprensa brasileira e italiana.

Battisti é foragido da Itália, onde foi condenado, num julgamento à revelia, à pena de prisão perpétua por suposta participação no assassinato de quatro pessoas na época em que militava em grupos de extrema-esquerda italianos, na década de 1970. Como último ato do governo anterior, o ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva decidiu pela não extradição do ex-ativista à Itália, decisão esta que havia sido incumbida a ele pelo STF.

Então, até aí, tudo bem. Mas o que acontece é que alguns setores da imprensa, e da sociedade em geral, têm memória bastante curta. O fato é o seguinte: em 1999, talvez muita gente não lembre mais, estourou o escândalo do Banco Marka. Salvatore Cacciola, ex-dono do Banco Marka, foi condenado no Brasil por gestão fraudulenta, em um esquema pelo qual ele supostamente teria se beneficiado de informações sigilosas sobre a desvalorização do real. A operação teria dado um “rombo” de mais de um bilhão de reais aos cofres públicos. Ficou preso, mas, após ser beneficiado com um habeas corpus,fugiu para a Itália.

Válvula de escape

Aí começa a outra parte da história que quase ninguém se lembra mais. O ex-banqueiro, que havia sido condenado a 13 anos de prisão, passou sete anos foragido na Itália. Foram inúmeros pedidos do governo brasileiro para que Cacciola fosse preso e extraditado para o Brasil: nenhum foi atendido, Cacciola circulava normalmente pelas ruas, exibindo sua liberdade, tudo graças à insensibilidade das autoridades italianas com os pedidos brasileiros de prisão e extradição. Até que ele, se sentindo muito seguro dessa condição de protegido pela pátria italiana, resolveu voar mais longe: resolveu passar uns dias no principado de Mônaco, que é conhecido mundialmente por seus cassinos e por ser reduto de férias de endinheirados. Foi aí que a liberdade dele acabou.

Cacciola estava hospedado em um hotel cinco estrelas e saiu para passear. Como naquele principado todos os dados dos hóspedes são automaticamente passados via internet à polícia, e como ele figurava entre os procurados pela Interpol, foi detido em uma praça de frente ao famoso Cassino de Monte Carlo e, posteriormente, através de uma atitude honrosa e leal da justiça francesa, extraditado para o Brasil.

As autoridades italianas parece que se esqueceram disso quando questionaram no STF a decisão do ex-presidente Lula de manter Battisti no Brasil. Para o conturbado governo italiano, que volta e meia vê seu chefe, o todo poderoso primeiro-ministro Silvio Berlusconi, envolvido até o pescoço em escândalos sexuais escândalos que lhe renderam processos e nos quais é acusado de manter relações sexuais com prostitutas quando elas eram menores de idade. O caso Battisti serve de válvula de escape, tira o foco da imprensa do primeiro-ministro, faz com que se esqueçam os escândalos. Mas com que legitimidade um país que tolera os atos insanos de seu primeiro-ministro questiona uma decisão soberana de uma corte de uma nação democrática, como o Brasil?

O princípio da reciprocidade

A pergunta fica no ar. Enquanto as autoridades brasileiras faziam incansáveis pedidos ao governo italiano pela prisão e extradição do ex-banqueiro Salvatore Cacciola, e o governo italiano fingia não ouvir, muita gente achou normal. Alegou-se até o fato de Cacciola ter dupla nacionalidade e, por isso, não ser extraditado. A verdade é que nosso país foi humilhado pelas autoridades italianas e agora, com a decisão do STF de manter Battisti no Brasil e ainda libertá-lo, é apenas o troco ao governo italiano. Doeu neles? Doeu em nós também, anos atrás, quando o Cacciola ficou debaixo das asas do governo da Itália. E por que a sociedade brasileira e alguns setores da imprensa não exploram isso?

Em sua coluna no jornal Metrô, edição de São Paulo, o competentíssimo jornalista José Luís Datena trata desse assunto. Aliás, foi nessa coluna que me inspirei para escrever sobre o assunto. O fato de Battisti não ser extraditado para a Itália é apenas o exercício de uma tradição na política externa e de imigração brasileira em que é baseada no princípio da reciprocidade.

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[Adelcio Vargas é técnico de suporte ADSL, São Paulo, SP]