Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dores, realidades e o papel que não cumprimos

Passado um mês da queda do Airbus 330 da companhia Air France no oceano Atlântico, com 228 pessoas a bordo, ainda hoje o assunto ocupa espaço na mídia. Ao contrário de outras notícias, veiculadas e esquecidas quase imediatamente, a tragédia com o voo AF 447 continua a ter destaque nos noticiários.

Por quê? Exigência do público ou da própria imprensa? O espectador quer mesmo saber, a todo instante, o que se passou ou deixou de acontecer em um avião – meio de transporte apontado com frequência, pela própria mídia, como o mais seguro que existe?

Acho que, neste caso específico, ninguém se preocupou em saber a resposta. Mas, na hipótese de que a vontade da maioria da população seja ouvir tudo o que puder até que se descubra (ou não) o motivo do acidente, essa situação me faz lembrar de professores, na faculdade e na profissão, que costumavam dizer: ‘Nem sempre o mais importante é mostrar ao público o que ele quer ver, mas o que ele precisa saber.’

Óbitos por quedas de moto cresceram 475%

Esse conceito, que tem a ver com o uso da capacidade de selecionar informações e o senso crítico do jornalista, leva a outro: o da proximidade da notícia em relação às pessoas. A abissal maioria dos cidadãos trafega pelas cidades no chão, seja de ônibus, carro, moto, bicicleta ou a pé. É essa maioria que mais está sujeita a acidentes, tanto pela imprudência de condutores de veículos quanto pela escassez de políticas públicas de transporte e conservação de vias urbanas e rodoviárias.

Políticas cujo desenvolvimento a imprensa não costuma cobrar. O máximo que se vê são queixas pontuais sobre falhas de sincronismo em semáforos e buracos em ruas e avenidas. Falta mostrar às pessoas o que elas precisam ter em mente: os problemas existentes são solúveis, e isso depende de vontade política – geralmente, despertada quando a mídia se ocupa de um tema com afinco, consegue que ele entre na agenda dos cidadãos, estes o comentem com outros e se conscientizem da necessidade de cobrar providências das autoridades.

De tão importante, o problema é comprovado com números. Em setembro do ano passado, a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) divulgou um estudo sobre a evolução do número de acidentes de trânsito nas capitais brasileiras entre 1996 e 2005. Nesse último ano, houve 99 mortes diárias, nessas cidades, em decorrência de acidentes.

‘É o mesmo que um avião caindo no país todo dia’, comparou uma das pesquisadoras responsáveis pelo levantamento, Maria Helena Jorge, ao destacar que os óbitos por quedas de moto cresceram 475% no período abrangido pela pesquisa.

‘Usamos medicamentos e estratégias de cem anos atrás’

Também está em voga falar sobre uma doença que põe pessoas em alerta no mundo todo: a gripe suína, tecnicamente considerada uma variante do vírus denominado Influenza (gripe) A, subtipo H1N1.

É óbvio que uma nova cepa (tipo) de um vírus causador de uma doença que pode matar não deve passar despercebida. Porém, pouco se destaca que a taxa de mortalidade da gripe suína está em torno de 0,4% do total de infectados. Salvo melhor juízo, é idêntica à de outras formas de gripe em pessoas cujo organismo está debilitado, especialmente crianças e idosos.

O mesmo subtipo H1N1 era o da gripe espanhola, que entre 1918 e 1919 teria afetado metade da população do planeta e matado, segundo estatísticas díspares, entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas. Há quem fale em 50 milhões. Dá para imaginar o assombro que teria ocorrido no mundo se a imprensa da época dispusesse de ferramentas tão avançadas quanto as de hoje.

Enquanto se destacam as doenças do momento (e, poucos anos atrás, falava-se na gripe asiática como um dos males que assolariam a humanidade neste início de milênio), deixam-se de lado moléstias menos populares, mas bem mais frequentes. Uma delas é a tuberculose, que ainda se dissemina e mata, apesar de haver formas de tratamento e cura. Segundo o Ministério da Saúde, registraram-se 72 mil ocorrências de tuberculose em 2007, no Brasil, com 4.500 mortes. O país é o 16º em número de casos. Como admitiu, em março deste ano, o ministro José Gomes Temporão, ‘há pouco investimento em pesquisa e no desenvolvimento de novas tecnologias de tratamento e diagnóstico. Hoje, ainda usamos medicamentos e estratégias de combate à doença de cem anos atrás’.

Perfil econômico e espetáculo

Deduzo, sem querer ofender quem sofre, que o perfil econômico das vítimas seja proporcional à atenção que a mídia dá às suas tragédias.

Em julho de 2007, cobri uma passeata de parentes e amigos dos 199 mortos no acidente ocorrido com o voo JJ 3054, da TAM, em São Paulo. Os manifestantes saíram do Parque do Ibirapuera e caminharam até o destruído escritório da companhia, diante do Aeroporto de Congonhas. Gritavam palavras de ordem. Alguns carregavam cartazes com a sigla do PSDB (um deputado gaúcho do partido, Júlio Redecker, foi uma das vítimas). Houve quem pedisse a cassação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O popular cantor Seu Jorge chegou a subir em um carro de som e cantar Pra não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré (‘Caminhando e cantando e seguindo a canção’…). Empregadas domésticas, trazidas pelos patrões e que talvez jamais tenham feito ou farão uma viagem aérea, estavam no protesto.

Quanto ao medo da gripe suína, o governo brasileiro tem recomendado às pessoas que evitem viajar para Chile e Argentina, países do continente onde mais ocorrem casos da moléstia. Mas há muita gente que não irá a lugar algum e já está bem doente. Novamente, os tuberculosos. Que, também segundo o governo, são encontrados mais frequentemente entre índios (em proporção quatro vezes superior à média nacional), portadores do vírus HIV (30 vezes), presidiários (40 vezes) e a população de rua (60 vezes).

Até o momento em que escrevo (quinta-feira, 2/7), não haviam encontrado a caixa-preta do Airbus 330 que caiu no Atlântico. As buscas continuam, mas se antevê a possibilidade de que fracassem e nunca se saibam as razões que levaram à queda.

A mídia segue preocupada em saber o que houve. Ao mesmo tempo, ignora outras grandes tragédias cotidianas que não dependem de caixas-pretas para serem decifradas. Conhecem-se suas causas muito bem, mas mal se fala nelas. Coisas do espetáculo midiático.

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Repórter do jornal A Tribuna, Santos, SP