Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Duas histórias. Ou mais

Neste novembro, os leitores encontram nas bancas um abundante material sobre os 120 anos de nossa República, proclamada na manhã de 15 de novembro de 1889 pelo marechal Deodoro da Fonseca.

O horário é um detalhe revelador dos acontecimentos. Nossa República foi proclamada ao amanhecer do dia 15 de novembro, no Rio de Janeiro; a independência, ao entardecer de 7 de setembro, em São Paulo. Apenas 67 anos separam as duas datas, o que em História é um prazo curto.

Quando e onde se dão os eventos que depois se tornam efemérides dizem mais coisas dos acontecimentos, pois há sutis deduções a serem tiradas do dia e do horário.

Ademais, temos as personalidades solares envolvidas. O príncipe português Dom Pedro I, nascido em Lisboa, tinha apenas 9 anos quando veio para o Brasil, em 1808, acompanhando o pai, Dom João VI, que fugia dos exércitos de Napoleão. O imperador francês, como que desfazendo de uma vez por todas a suposta covardia do rei português, reconheceu: ‘Foi o único que me enganou’.

Músico bedel

Quando gritou ‘Independência ou morte’ à beira do riacho Ipiranga, Dom Pedro tinha apenas 23 anos. Iria completar 24 em 12 de outubro. Estava descansando à beira de um riacho, que entretanto parece maior do que o rio Amazonas na retórica bombástica do Hino Nacional: ‘Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante’. O riozinho tinha margens plácidas, sim, mas eram quase beiradas apenas. Margens têm os rios!

Ao depor Pedro II, filho do precedente, mas que nas efígies parece o pai ou o avô de Pedro I, o alagoano Manuel Deodoro da Fonseca tinha completado 62 anos em 5 de agosto daquele ano. Para os padrões da época, era um velho.

A vida era curta naquela quadra da História. Dali a três anos morreria, dias depois de completar 65 anos. Deu o grito ‘Viva a República!’, a cavalo, cedido por outro militar, pois tinha ido a pé ao Campo de Sant´Anna. Combina com um ex-combatente de tantas revoluções e da Guerra do Paraguai ter proclamado a República logo ao amanhecer, horário em que travou tantas batalhas, obedecendo ou mandando. Aliás, o alagoano Deodoro tinha sido governador do Rio Grande do Sul.

Dentre outras, duas publicações que celebram a efeméride merecem destaque nas bancas: a Revista de História da Biblioteca Nacional (ano 5, número 50), cuja redação está no Rio; e História Viva (ano VI, número 73), com sede em São Paulo.

História Viva resume na capa o que afinal estamos celebrando:

‘República: 120 anos. 2 golpes. 1 revolução. 15 militares no comando. 27 civis no poder. 7 presidentes sem votos. 4 depostos. 9 eleições indiretas. 20 diretas. 6 chefes da nação mortos. 71 anos de governos eleitos pelo povo. 49 anos de governos indicados por minorias. 21 anos de regime militar’.

A Revista de História da Biblioteca Nacional , entre tantos artigos alentados sobre a efeméride, traz uma entrevista com o gaúcho Paulo Brossard, ex-senador, ex-ministro da Justiça do governo de José Sarney e ex-ministro do STF, que completou 85 anos em outubro deste ano. Professor de Direito, ele destaca que em 20 anos a Constituição de 1988 já teve mais de 50 emendas: ‘Botaram coisas que não precisava e acabaram tirando outras tantas que podiam estar lá muito bem’. E endossa o pessimismo de vários historiadores: ‘A República viveu sob uma eleição falsa, com uma representação mentirosa. Esse foi seu segundo grande desastre’.

Perguntando sobre o que mais gosta na cultura de seu estado natal, disse que é a contribuição cultural do Rio Grande do Sul ao Brasil. Cita escritores como Erico Verissimo, Mario Quintana, o historiador Moisés Vellinho, o músico Lupicínio Rodrigues, que, aliás, foi bedel da Faculdade de Direito.

Verbo esquisito

Saborosa entrevista! Perguntado se vivemos uma República, responde:

‘Pelos rótulos dos nossos vinhos, nós vivemos em uma monarquia. Isso é curioso. Embora o vinho tenha vindo praticamente depois da República, para valorizá-lo coloca-se um título nobiliárquico’.

Mas fazemos isso em muitos outros campos, ministro Brossard. Pelé é o rei do futebol; Olacyr de Moraes foi o rei da soja; Antônio Fagundes viveu o rei do gado; o presidente Fernando Henrique Cardoso era o príncipe da sociologia; e a atriz Regina Duarte viveu a Rainha da Sucata, a inesquecível Maria do Carmo, cujos negócios de ferro-velho sofrem os efeitos devastadores do Plano Collor, que o sagaz Sílvio de Abreu incluiu nas tramas, alcançando picos de 76 pontos de audiência para aquela novela das oito. Nenhum político, nem mesmo Lula, recebe tamanha audiência. Por isso, nos comícios, busca-se o apoio de referências de nossa televisão.

Com revistas como essas, a imprensa dá valiosa ajuda aos professores na tarefa de ensinar – de ‘lincar’, como dizem os modernosos, que substituíram desse modo esquisito o verbo ligar – o presente e o passado, acendendo luzes para completar a instrução dos estudantes. E, naturalmente, para entreter todos com boas opções de leitura, a propósito de mais uma efeméride brasileira.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)