Nos últimos dias, duas mulheres ocuparam a mídia francesa. Uma pelo escândalo suscitado por um livro de sua autoria sobre Dominique Strauss-Kahn, Belle et bête; outra, por assumir a direção do maior jornal francês. Marcela Iacub e Natalie Nougayrède têm quase a mesma idade.
A segunda, aos 46 anos, é a primeira mulher eleita para dirigir a redação do Le Monde, o jornal de referência da França e das representações diplomáticas no mundo. Entre os profissionais do jornal candidatos ao posto supremo, Nougayrède obteve 79,98% dos votos dos colegas, que foram em massa votar. Ela precisava ter mais de 60% dos votos da Redação e superou por pouco o score de seu antecessor, Erik Izraelewicz, morto em novembro passado (ver “Misterioso Izra”).
Antes de passar pelo voto da Société des Rédacteurs du Monde, Nougayrède foi escolhida, entre os quatro pretendentes, pelo trio de acionistas majoritários do jornal: Pierre Bergé, Xavier Niel e Matthieu Pigasse. A jovem jornalista vem de uma experiência de correspondente em Moscou e na Ucrânia e deve provar agora que sabe dirigir um jornal.
Estopim da relação
Marcela Iacub não tem medo do escândalo. Apesar de não ser jornalista, a neta de rabino conhecida apenas no pequeno mundo intelectual parisiense tem uma crônica semanal no Libération. Jurista libertária, Iacub escreve ensaios nos quais discute a relação das leis com a moral sexual vigente, pois é uma pesquisadora da filosofia do direito. Ela defende teses que não raro irritam as feministas francesas, como por exemplo o direito de vender seu próprio corpo ou o direito à pornografia.
Sua recente notoriedade começou com a capa da revista Le Nouvel Observateur. O título “Mon histoire avec DSK” é a entrevista na qual ela conta como foi levada a escrever um livro sobre Dominique Strauss-Kahn, depois de manter um romance com ele, no ano passado. Na mesma edição, a revista publica trechos exclusivos do livro, editado numa operação topsecret, assim como a reportagem.Nem mesmo os jornalistas da revista sabiam que a matéria estava sendo feita. Jérôme Garcin e Laurent Joffrin, responsáveis pela revista, não pouparam elogios à qualidade literária da obra de Iacub – comparada a Sade, entre outros grandes escritores.
No dia seguinte, a capa do Libération e mais três páginas trataram do livro, considerado pelos colegas de Iacub como uma obra literária de grande valor, muito além da potencialidade explosiva. A foto da escritora e o título “Une liaison dangereuse” (Uma ligação perigosa) tinham o subtítulo “A escritora Marcela Iacub conta em Belle et bête seus sete meses de paixão com um ‘cochon’ [porco] escandaloso e célebre”.
O texto do livro mostra que Iacub tem uma imagem elevada de si mesma. Logo no início, ela escreve: “Comecei de maneira imodesta a me considerar como Voltaire e essa ideia ficou”. Logo depois: “Tu me escreveste como o capitão Dreyfus se dirigindo a Zola”.
O que é o livro? Uma fábula, uma fantasia, na qual Marcela Iacub compara Dominique Strauss-Kahn a um porco, a bête do título. Entre as causas que a ensaísta vegetariana defende está a inclusão dos animais domésticos na humanidade. E diz que a proteção dos porcos é uma espécie de vocação. A jurista, nascida na Argentina em 1964, não cita em nenhum momento o nome de seu amante, mas dá indicações para que seu leitor saiba que se trata de DSK. E, se houvesse dúvidas, sua entrevista ao Nouvel Observateur as teria dissipado.
A linguagem, segundo um jornalista que o leu, é crua, as cenas de sexo descritas são tão cruas quanto o texto. Mas ela evoca também um homem desamparado que não sabe mais quem é, que papel representa, que personagem interpreta. Ela fala dele como de um cãozinho de sua ex-mulher, a jornalista e milionária Anne Sinclair, de quem está se divorciando. O “cochon” é isso:
“Sabe-se que a maior parte dos seres humanos só gostam de sexo em certas condições. Que eles procuram nos objetos de seus desejos belezas que justificam um ato que pode ser repulsivo de outra forma. Somente os animais não cuidam desse aspecto da coisa. Mas tu não, tu me fazes pensar nos cães que tive e nos quais percebi, com certo espanto, que eles gostam de todas as cadelas no cio, sem distinção.”
No início de 2012, ela lançou o livro Une société de violeurs? (Uma sociedade de estupradores?), no qual discutiu o caso Strauss-Kahn e tomou sua defesa no affaire que o levou à prisão em Nova York (sobre o caso, ver, neste Observatório, “Processos contra a imprensa”, “A omertà da imprensa francesa” e “Exercício de mea-culpa sem respostas concretas”). Sensibilizado, o ex-diretor do FMI lhe telefonou para agradecer o apoio e iniciaram imediatamente uma relação que durou até agosto de 2012.
Reações o Libé
O livro Belle et bête – resultado dessa ligação explosiva entre um homem que teve sua vida sexual exposta ao mundo inteiro desde maio de 2011 e uma intelectual polêmica – levou os dois amantes a se enfrentarem em outro décor, um tribunal. DSK não gostou do que leu na imprensa e seus advogados tentaram, na semana passada, impedir o lançamento do livro, que via como um atentado a sua vida privada.
Strauss-Kahn compareceu ao tribunal e se disse chocado pelo comportamento de uma mulher “que seduz para escrever um livro, que é um atentado desprezível à minha vida privada”. A juíza considerou que “os limites da liberdade de expressão foram ultrapassados e que o direito à liberdade de criação não pode prevalecer sobre o atentado à vida privada que são caracterizados”.
A sentença determinou que o livro seja vendido com um encarte, no qual deve ser publicada a decisão da Justiça. O Nouvel Observateur foi condenado a pagar a DSK 25 mil euros; a autora e a editora Stock foram condenados a pagar juntos 50 mil euros à vítima. Tanto a revista quanto a autora e a editora apelaram da decisão.
Mesmo depois da decisão da Justiça, o jornalLe Monde continuou o debate com numerosos artigos discutindo a pertinência da obra, suas qualidades literárias ou a ausência delas. O suplemento Le Monde des Livres dedicou na sexta-feira (1/3) duas páginas ao fenômeno literário difícil de classificar (romance, farsa, panfleto, fábula) que promete se transformar no best-seller do ano. Num dos textos, duas jornalistas traçam o perfil de uma insubmissa que não tem medo de chocar ao defender num de seus livros (L’empire du ventre, “oimpério do ventre”) a invenção do útero artificial, que permitirá aos homens fazer filhos sem o controle das mulheres.
Numa nota seca e objetiva, publicada no próprio jornal, a sociedade civil que representa os jornalistas de Libération discordou publicamente da escolha editorial do jornal e protestou contra o exagerado espaço dado a um livro tão controvertido e, além do mais, assinado por uma colaboradora de Libération –o que infringe uma regra da casa.
Os jornalistas dizem que o princípio de não falar de livros de seus jornalistas é uma decisão acertada, que pretende evitar confusão entre informação e autopromoção. E enumeram vários motivos para se perguntarem se é o caso de o Libération manter a crônica semanal da escritora.
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[Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris]