Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Duas palavrinhas

Outro dia, numa eloquente demonstração da nova pujança nacional, o Brasil sediou um concurso de Miss Universo. Não ria. Como dizia o outro, nunca antes na história deste país etc. E a plateia reagir com indiferença ao fato de a Miss Brasil, mesmo desfilando em casa, ter chegado em terceiro lugar, revela também a nossa súbita maturidade. De novo, não ria. Se não se abala com as grandes questões, por que o Brasil se abalaria com as pequenas?

Em 1954, quando Martha Rocha ficou em segundo no Miss Universo, em Miami, foi um problema. Quatro anos antes, em 1950, o Brasil já fora vice ao perder a Copa para o Uruguai. Era como se estivéssemos condenados ao segundo lugar entre as nações – o que, como se sabe, equivalia ao último lugar. O pior é que, no caso de Martha Rocha, correu pela imprensa que havíamos sido garfados. O júri alegara que Martha tinha duas polegadas (5 cm) a mais nos quadris do que no busto e dera o título à lambisgoia americana. Enfim, o que para nós era uma qualidade – cadeiras anchas e busto delicado – para eles era um defeito.

Repórter safo

E se soubéssemos, na época, que as duas polegadas foram uma invenção do repórter João Martins, enviado especial de O Cruzeiro a Miami, em conluio com os outros enviados brasileiros, logo após o desfile? Que o júri só elegeu a Miss EUA porque o concurso precisava conquistar o público americano?

A revelação de que as duas polegadas eram uma farsa foi feita pelo próprio João Martins à Manchete em 1979 e confirmada pelo ex-diretor de O Cruzeiro Accioly Netto, em suas memórias, O Império de Papel, em 1998. Ou seja, num Brasil jovem e ingênuo, com duas palavrinhas um repórter safo manipulou a psique de milhões.

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[Ruy Castro é jornalista, escritor e colunista da Folha]