Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Duas versões e a imagem editorializada

Dois grandes nomes do jornalismo mundial percebem, pelo mesmo ângulo, uma questão de fundo que atravessa a alma secular do jornalismo. Cláudio Abramo e Carl Bernstein (da célebre cobertura do Caso Watergate) entendem que a missão maior do repórter é apurar a melhor versão da verdade – e publicá-la. Uso essa referência para discutir três versões da “verdade” professadas pelo jornal Folha de S.Paulo e dois telejornais da TV Globo (Bom Dia Brasil e o Jornal das Dez, da Globo News). O fato: um megaprotesto que reuniu dezenas de milhares de argentinos, contra o governo de Cristina Kirchner, no último dia 8 de novembro (batizado nas redes sociais de “8N”).

No maior jornal diário brasileiro, esse acontecimento que mobilizou multidões na Argentina, ganhou o destaque na capa da edição de 09/11 (http://migre.me/bOlGS), com uma imagem central sobre a seguinte legenda:

MEGAPANELAÇO: Em Buenos Aires, milhares fizeram o maior protesto contra Cristina Kirchner, pedindo mais liberdade de expressão e repudiando um terceiro mandato (Mundo, A26)” [grifos meus].

Na hierarquia da Folha de S Paulo, os milhares de argentinos que protestaram contra o governo de Cristina Kirchner o fizeram, em primeiro lugar, em defesa da suposta “liberdade de expressão” e, em segundo, contra um possível “terceiro mandato”. Temos aí, no limite, uma meia verdade. Moldando os fatos à visão editorial do diário paulista, o editor de primeiro página editorializou a imagem, como se poderá observar comparando o relato de outro repórter (Ariel Palácios, da Globo News) e a própria cobertura da imprensa portenha (Clarín).

A reportagem de Sylvia Colombo (correspondente da Folha em Buenos Aires), na editoria Mundo (09/11, p. A26), resume a motivação do protesto em três questões, acrescentando à legenda a preocupação com a “segurança”. Contudo, a jornalista da Folha escreve que: (a) oprotesto foi organizado por opositores da presidente Cristina Kirchner; (b) os organizadores estimaram em 500 mil o total de participantes – a polícia não divulgou dados; (c) os participantes do ato eram principalmente de classe média e alta.

A versão da verdade para o Clarín (edição de 09/11), o principal porta-voz da oposição ao governo de Kirchner, traduz-se em outro discurso, com sensíveis diferenças da suposta agenda da mobilização publicada na Folha. Confira:

“La principal destinataria de las protestas fue la presidenta Cristina Kirchner. Las consignas fueron variadas: se vieron carteles rechazando su posible “re-reelección”; pidiendo por el fin de la inseguridady mejor Justicia; se repetían quejas escritas y verbales contra la corrupcióny la inflación, entre otros reclamos (http://migre.me/bOnAz) [grifos meus].

Nos grifos acima, destacamos as questões: contra a re-reeleição de Cristina, o fim da insegurança (pública), melhor Justiça, contra a corrupção e a inflação. Um rol de motivos de envergadura pública muito mais consistente, inequivocamente, que os dois (no limite três, no texto da reportagem) resumidos pela Folha de S. Paulo.

As duas versões da Globo

Esse lapidar exercício de “publicar a melhor versão da verdade” encontra, em dois telejornais da Globo, um exemplo ainda mais visível e contraditório. O primeiro discurso jornalístico é da repórter Delis Ortiz, correspondente da TV Globo para a região do Mercosul. No Bom Dia Brasil (09/11), Ortiz começa jurando que o megaprotesto não tinha “organizadores”, era fruto da magia das redes sociais, guiadas talvez pelo deus-mercado, divindade ancestral do deus Tupã:

“A razão do protesto era leque de insatisfações: falta de segurança, inflação, corrupção, controles na economia e ameaças à liberdade de expressão. (…) A principal avenida da Capital, a 9 de julho, ficou repleta de gente com panelas, apitos e bandeiras. Valia tudo para mostrar o desgosto com o governo de Cristina Kirchner. (…) Não havia um líder que encarnasse o comando do panelaço. A convocação foi pelas redes sociais. (…) Há um ano [a presidente] tinha mais de 60% e agora está com 28% (http://migre.me/bOoyH) [grifos meus].

Comparemos agora esse relato com o do jornalista argentino Ariel Palácios, que trabalha na mesma emissora, no canal a cabo (Globo News, Jornal das Dez, 08/11):

“O ‘panelaço’ desta noite tem dimensões significativas. Centenas de milhares de pessoas estão protestando em todo o País. (…) O leque de protestos é muito amplo, já que os manifestantes reclamam contra a escalada inflacionária – que a presidente Cristina diz que não existe –, dos escândalos de corrupção dos ministros e do vice-presidente, Amado Boudou, também reclamam contra as restrições que o governo Kirchner aplicou sobre o dólar [é a moeda que há quatro décadas que é o principal refúgio financeiro dos argentinos], contra o crescimento da criminalidade e, de quebra, protestam contra os luxos da presidente que há poucos dias ordenou o gasto equivalente a um milhão de reais para reformar um banheiro da Casa Rosada [palácio presidencial]. Os diversos partidos da oposição, tanto da esquerda quanto da direita, preferiram não participar ativamente do ‘panelaço’. (…) O momento não é exatamente positivo para a presidente Cristina. Uma pesquisa indica que a aprovação popular é de apenas 31,6%; outros 59,3% desaprovam a forma como ela está governando a Argentina (http://migre.me/bOq96) [grifos meus].

No relato de Palácios não há menção alguma à questão da terceira reeleição (bandeira não assumida pelo governo Kirchner), tampouco às possíveis ameaças às liberdades democráticas. O megaprotesto é um sinônimo inequívoco, por supuesto, de vitalidade democrática do povo argentino. Por último, há divergências inclusive na precisão dos números de pesquisa citados. Palácios cita dois institutos diferentes de pesquisa sobre a popularidade. Ortiz não faz nenhuma referência à origem do dado com o qual finaliza seu texto.

Novo ator político

O jornal La Nación ouviu alguns intelectuais argentinos logo após o “panelaço” (“El mensaje de las cacerolas, según los intelectuales”). Das várias posições, destaco a do cientista político Vicente Palermo:

“No hubo sorpresas. Tanto la composición social, una presencia masiva de la clase media sin sectores populares, como las consignas, en general sin agravios ni llamados destituyentes, estuvieron dentro de lo previsto. El Gobierno va a tener serios problemas para contraargumentar. Hay un nuevo sujeto político, diferente, con un comportamiento todavía difícil de prever y con capacidad para incidir en el tablero político” [grifos meus].

Palermo reforça o perfil dos participantes (classe média, sem setores populares), mas evidencia com igual peso o fato de que a megamanifestação faz surgir um novo sujeito político, com capacidade de ação sobre o tabuleiro político daquele país.

Volto ao ponto de partida, bebo outra vez na fonte de Cláudio Abramo, quando ele discute (in A regra do jogo) a diferença entre interpretação e opinião, travestida de notícia, no discurso jornalístico:

“A interpretação não é opinião. Pode se interpretar o desencadeamento, a concatenação dos fatos e o significado de certas coisas. Pode-se dizer: tal fato ocorreu porque antes havia ocorrido isto e amanhã pode ocorrer aquilo. É uma interpretação. A opinião fica um passo além. É quando se diz: isso aconteceu e está errado.”

Nos relatos editorializados (na Folha, numa simbiose de texto e imagem), no caso da repórter Delis Ortiz é mais grotesco posto que ela fez sua “passagem” de texto no meio da passeata, fica evidente a tentativa de a mídia ocupar o espaço dos partidos políticos, na tentativa de ditar o debate público. Ao secundarizar a notícia, a mídia (Folha e TV Globo, neste caso específico) pratica um tipo de jornalismo às avessas, que tenta adequar a realidade ao seu discurso (relato), à revelia dos fatos e do distinto público.

Mas, afinal, para que serve o jornalismo? Valho-me de Jack Fuller (apud Kovach e Rosenstiel, in Os elementos do jornalismo): “A meta principal do jornalismo é contar a verdade de forma que as pessoas disponham de informação para sua própria independência”.

Ao enveredar por um caminho oposto, Folha e Globo desservem à sociedade e à democracia, porque tentam impor, a qualquer custo, um ponto de vista particular, de forma ilegítima, sem conexão com os fatos, protagonistas e contextos.

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[Samuel Lima é professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), pesquisador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS) e professor visitante do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina]