Empregando a antiga metáfora do livro para a passagem do tempo, faltam algumas poucas páginas até o final deste ano. E as páginas viradas podem ser reviradas e relidas. Uma breve retrospectiva 2006, se me permitem, é releitura do ano prestes a acabar.
O julgamento de Saddam Hussein, a morte de Pinochet e de Alfredo Stroessner, a grave doença de Fidel Castro são páginas que falam de um ciclo que começa a encerrar-se. Nenhum poder é eterno. Há epílogos e epitáfios a serem escritos. Faltaria assistir ao julgamento de Bush. Mas isso somente nos próximos capítulos.
No Brasil, a reeleição de Lula teve uma contrapartida a ser analisada. Além do apoio popular ao presidente, assistimos à rejeição à candidatura de Geraldo Alckmin, cujo perfil ‘Opus Dei’, artificial e intolerante, choca-se com o que queremos para o país.
Perplexos e condescendentes, revoltados e acomodados, lemos e relemos a crônica da corrupção crônica. Lemos, relemos a tragédia da violência. O drama da educação decadente. E se o desempenho lamentável do Brasil na Copa do Mundo provocou tristeza, foi providencial… pois não tivemos assim motivos para esquecer a realidade. E o astronauta brasileiro Marcos Pontes tornou-se símbolo nacional do nosso avanço-atraso — ‘ir para o espaço’, expressão ambígua.
E falando em espaço, agora nos é oferecida uma nova narrativa, cheia de suspense… já não se sabe o que é pior: esperar horas e horas no aeroporto ou embarcar na aeronave indevidamente controlada…
Esperança
Perdemos personagens: o bispo D. Luciano Mendes de Almeida, o genial músico Sivuca, o técnico Telê Santana, o palhaço Carequinha, o humorista Bussunda, os atores Raul Cortez e Jece Valadão. Eles fazem parte da nossa cultura, estão presentes na nossa memória.
Reler 2006 é tarefa necessária para que possamos continuar escrevendo. Reler é palíndromo, reler de trás para frente, reler sempre. A atitude crítica consiste em fazer esse exercício, não deixar que caiam no vazio os relatos, os lances, os roteiros.
Nas entrelinhas dessas páginas, mais numerosas do que podemos folhear, há milhões de outras histórias, o cotidiano banal, conflitos que não serão manchete, lutas íntimas em busca do amor, da verdade, da justiça.
Mês de dezembro, mês para repensar o que aconteceu com os outros, mas também com cada um de nós. Nossa vida pessoal, modesta e oculta aos olhos da mídia, merece igual e atenta releitura.
Mas nem só de releituras vivemos. Queremos novas edições, olhamos para o futuro com um misto de esperança e dúvida, curiosidade e medo. Desejos utópicos… e sensação de que nada mudará substancialmente. Apostamos no melhor, sabendo que o pior não é fruto do acaso.
Incompetência
Por isso minhas imprevisões para o imprevisível ano de 2007, e as suas pautas praticamente predefinidas.
Do primeiro ano do segundo mandato de Lula (mais do que nunca abençoado pela aprovação popular), esperamos, afinal, a superação do passado. Lula é o brasileiro na presidência. Finge que não viu nada… para sobreviver. Ri dos adversários e acaba levando rasteira. Levanta, sacode a poeira. Teremos surpresas positivas? Torçamos, ao menos, para que as negativas não se repitam.
No ano que vem prevê-se que lotarão as cadeias do Brasil cerca de 500 mil presidiários. Uma panela de pressão cada vez mais assustadora. O que faremos com essa energia humana acumulada, reprimida? Seres humanos com os quais não sabemos conversar (e eles desaprendem conosco). Seres humanos nos quais não aprendemos (quem nos ensinaria?) a descobrir as melhores possibilidades. Tenho receio das conseqüências de nossa incompetência. Outro dia assisti pela segunda vez ao Cabo do medo. Quem se lembra do filme, entenderá do que falo.
Imprevisto
No próximo ano o papa Bento XVI visitará o país. Haverá, como nos tempos de João Paulo II, aquele entusiasmo, aquela vibração? Esse papa com escassa empatia… Outra diferença é com relação ao quadro religioso brasileiro: nas últimas duas décadas o catolicismo refluiu bastante. Encontrará multidões o papa mais teólogo do que midiático?
Confesso meu ceticismo com relação aos números futurísticos. Em 2007 o Brasil deverá crescer 5%, diz um ministro. Crescerá apenas 3%, diz um deputado da oposição. Não crescerá, afirma o pessimista. Eu e milhões de brasileiros olhamos para o Brasil e não vemos alterações em sua altura… E o que parece crescer mesmo é a vontade de reajustar (generosamente) o salário dos parlamentares…
Ah, sim, crescerá o número de habitantes. Disso tenho certeza. Embora as famílias tenham, em média, menos filhos do que em outras épocas, a tendência ainda é de crescimento demográfico. Mais brasileiros virão ao mundo, e o compromisso de educá-los, orientá-los, recairá mais cedo ou mais tarde sobre os professores, que continuarão (deveria eu predizer o contrário?) sofrendo terrível processo de desvalorização profissional.
Previsões ou imprevisões, estejamos sempre bem prevenidos: o imprevisto é a única coisa certa.
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Doutor em Educação pela USP e escritor (www.perisse.com.br)