Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E ninguém se lembrou de Ray Ewry…

Mais uma Olimpíada, mais uma grande oportunidade de se avaliar o nível da imprensa esportiva brasileira e mais uma vez a triste constatação de que meus colegas do esporte, com raríssimas exceções, só conseguem analisar as nuances do velho e bom futebol.

Como muletas que fazem o jornalismo esportivo andar, novamente ex-atletas de inúmeras modalidades se espalham pelos veículos de comunicação, dominando microfones com seu português constrangedor, derrapando na ética, ocupando um espaço que deveria ser nosso, mas que perdemos por negligência, arrogância e incompetência.

Somos novamente obrigados a ouvir frases do tipo ‘tal time está marcando sob pressão’, como se a equipe que estivesse marcando é que fosse pressionada (o certo, estamos carecas de saber, é ‘por pressão’). Também já ouvi, em uma prova entre mulheres, que um dos times marcava ‘homem a homem’!… Bem, vou parar por aqui, pois a lista de gafes é imensa.

Estatísticas, tecnologia e mercantilismo

Mas essa multidão de ‘convidados’ entende de suas especialidades? Claro que sim. Tecnicamente, há jornalistas que poderiam substituí-los? Na maioria dos esportes olímpicos, temos de admitir que não. Então, eles são imprescindíveis para uma boa transmissão olímpica? Infelizmente, a resposta ainda é sim, o que apenas demonstra a precariedade de nossa mídia esportiva.

Se você não conhece profundamente o assunto sobre o qual está falando, ou escrevendo, isso certamente empobrece sua visão dos fatos, sua intuição, seus enfoques, suas pautas. Você acaba tendo de acreditar nos outros, de seguir o rebanho, o que torna as coberturas parecidas, burocráticas.

Quem é esse Michael Phelps que já bateu em Pequim os recordes de medalhas de ouro em Jogos Olímpicos? O que ele pensa das coisas? Vai votar no Obama? Ouve que tipo de música? Namora? É gay? Por que ele é tão bom? Como se apaixonou pela contagem de azulejos? Gosta de ler, ou é um obtuso?

Acho que eu, como a maioria das pessoas que está acompanhando a Olimpíada pela TV, vou chegar ao desfile de encerramento sem conhecer esse cara de verdade, apesar de ouvir falar dele todo dia. Sabe por quê? Por que esta é a Olimpíada dos números, das estatísticas, dos recordes, dos milésimos de segundo, da tecnologia, do mercantilismo. Mas não é a Olimpíada dos seres humanos, aquela que eu aprendi a admirar.

‘O atleta mais maravilhoso do mundo’

Aliás, o jornalismo brasileiro entrou nessa onda estatística. A memória prodigiosa para lembrar escalações e fatos nunca foi tão valorizada, apesar de apenas repetir dados que podem ser obtidos com um clique no computador. Por outro lado, o bom texto, a análise perspicaz dos acontecimentos e a decodificação desses números todos parecem ter saído de moda.

Se é verdade que os números não mentem, também é inegável que é preciso conhecimento e sabedoria para descobrir o seu real significado. Dizer que Michael Phelps é o maior atleta olímpico de todos os tempos porque ganhou mais medalhas de ouro é uma maneira demasiadamente simplista de entender a história olímpica.

Alguém se lembrou do índio Jim Thorpe que, nos Jogos de Estocolmo, em 1912, conquistou a proeza inédita de ser campeão no pentatlo e no decatlo? Sabe o que é vencer em um esporte com cinco modalidades diferentes e, seis dias depois, repetir a façanha em outro com dez modalidades? Ao entregar-lhe a medalha de ouro, o rei Gustavo V, da Suécia, exclamou: ‘O senhor é o atleta mais maravilhoso do mundo!’ (hoje o feito de Thorpe é impossível, pois os homens não disputam mais o pentatlo).

Ray não aceitou a derrota

Bem, eu, que fui criado na redação do Jornal da Tarde, onde se cultivava o jornalismo com interesse humano, gostaria de ter conhecido mais o outro lado dessas máquinas de competir que estão na China, um pouco mais da alma e do coração desses homens e dessas mulheres que pulsam atrás dos recordes.

Não me conformo, por exemplo, de não ter ouvido nada sobre Ray Ewry, que além de ter uma história de vida fantástica, também é um dos maiores ganhadores de medalhas de ouro em Jogos Olímpicos. Não entendo mesmo como não falaram dele. E seria tão fácil saber mais sobre esse grande cara!

O garoto Raymond Clarence Ewry vivia uma infância tranqüila em Lafayette, Indiana, quando, aos 12 anos, contraiu a poliomielite e ficou paralisado da cintura para baixo. Era o ano de 1885 e a medicina não tinha o que fazer nos casos de pólio, mesmo nos Estados Unidos. Seus pais também acreditaram que não havia remédio. Mas Ray não aceitou a derrota.

Dez medalhas de ouro

Por sua conta, criou uma rotina de exercícios físicos de sua invenção para recuperar a força das pernas. Sua dedicação acabou amplamente recompensada: após cinco anos de cadeira de rodas, não só voltou a andar, como se tornou um fanático pelo exercício físico, tornando-se um precursor da ginástica isométrica, baseada na contração do músculo sem movimento.

Em 1897, aos 24 anos, após concluir a graduação em Engenharia e motivado pela realização dos Jogos de Atenas no ano anterior, Ray Ewry, então um rapaz alto e forte, passou a treinar com os atletas do New York Athletic Club para participar da Olimpíada seguinte, em Paris.

Em Paris, competiu nas provas estreantes de salto parado, que consistiam em saltar altura, distância e triplo sem correr. Venceu as três, com recordes mundiais. Agachando-se ao máximo, ficando na ponta dos pés e usando os braços estirados para trás para dar equilíbrio, obteve 1,65m no salto em altura, 3,21m no alto em distância e 10,58m no triplo.

Mesmo os estatisticistas deveriam ter lembrado de Ewry, pois além das oito medalhas de ouro em Jogos Olímpicos, ganhou mais duas douradas na edição especial de Atenas, em 1906, que não constam nos sites oficiais, mas que foi considerada a ‘Olimpíada’ mais bem organizada entre as primeiras edições dos Jogos modernos (e com dez medalhas de ouro, Ewry supera os norte-americanos Mark Spitz [natação] e Carl Lewis [atletismo], a soviética Larissa Latynina [ginástica], e o finlandês Paavo Nurmi [atletismo], todos com nove medalhas de ouro).

Oito reais

Ídolo popular, Ray Ewry ficou conhecido como ‘O homem de borracha’ ou ‘O homem sapo’. Trabalhou como engenheiro para a prefeitura de Nova York. Morreu em setembro de 1937, aos 64 anos.

A história de Ewry, assim como a de muitos outros notáveis campeões olímpicos, está em um livrinho de bolso de 160 páginas, lançado há quase dois meses, que custa menos de 10 reais (em alguns sites chega a ser vendido por 8 reais). Ou seja: qualquer jornalista que se interessa pelos grandes dramas olímpicos poderia estar mais bem preparado para escrever ou falar sobre os Jogos de Pequim se se dispusesse a ler esse livrinho, cujo título é Sonhos mais que possíveis. Quem sabe ainda dá tempo…

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Jornalista e escritor, tem 13 livros publicados, dos quais sete sobre esporte