Por uma boa causa, quebrei uma escrita de mais de dez anos: comprei o New Musical Express, o semanário londrino que pauta 100% da imprensa musical do planeta. Fui atraído pela capa, sobre os 20 anos do álbum “Nevermind”, do Nirvana. Mas o que encontrei foi muito além disso. Uma publicação vibrante, bem escrita, quente e, acima de tudo, apaixonada. Bandas de meninos de 19 anos são apresentadas como a salvação da Terra. Álbuns de artistas iniciantes tanto podem ser elevados às alturas mais extremas, quanto eviscerados por uma crítica negativa.
Eu não comprava mais o NME por teimosia. Por julgá-lo uma fábrica de hypes. Por achar melhor pensar com minha própria cabeça do que simplesmente seguir o que o semanário chancela. Mas vejo que vacilei. O NME faz um tipo de jornalismo, e tem uma relação com artistas, impensáveis no Brasil atual. A tensão criativa que ele tão bem expressa não encontra eco por aqui. Pelo menos não no dito cenário independente de São Paulo, que acabo acompanhando mais de perto. Em terras bandeirantes, praticamente não há mais distinção entre jornalistas e músicos. É todo mundo meio blogueiro, meio “tuiteiro”, meio crítico, meio artista. É todo mundo muito amigo, tudo é muito fofo, tudo é muito “amor” (aos mais velhos e aos offline, explico que “amor” vem sendo usado como sinônimo de “ótimo”).
Em qualquer jornal, revista ou site, em qualquer blog ou conta do Twitter, você vai ler exatamente os mesmos elogios para o rap feito sob medida para jornalistas branquinhos de Criolo, para a bossa velha de Romulo Fróes, para o sambinha sem cojones de Thiago Pethit. Para complicar esse quadro de complacência, quase toda a cena de música independente no Brasil está de costas para o público. Não precisa dele. Abrigou-se sob um guarda-chuva estatal ou paraestatal.
Esquema do Sesc paga mais do que merecem
Novos artistas (e muitos nem tão novos assim), praticamente só tocam em dois tipo de casa: Sescs ou no Studio SP, na rua Augusta. Os Sescs, regiamente mantidos por um imposto compulsório, têm uma peculiaridade: pagam cachês altos, muito acima do mercado, e cobram ingressos baratos (isso quando cobram alguma coisa). E o Studio SP, uma potência que não para de crescer (tem agora um irmão recém-inaugurado, o Studio RJ), opera numa interface entre o mundo artístico e o político-partidário que eu prefiro não conhecer.
Cria-se assim o seguinte quadro. A crítica não perturba. Todos, “críticos” e músicos, rezam pelo mesmo catecismo consensual. Os artistas não precisam nem querem crescer. Estão satisfeitos com o esquema dos Sescs, que lhes paga mais do que merecem. E não precisam correr atrás de público. Por si, os shows baratos e os festivais gratuitos, bancados por governos, já atraem o pessoal. Aponte um músico ou banda que tenha surgido desse mundo indie estatal de Sescs, Studio SP, verbas da Petrobras, do MinC, de Secretarias de Cultura, um único artista desses que seja maior hoje do que há cinco anos. Não existe.
Um jornalismo musical que vibra e incensa
Pode-se fazer uma crítica política a esses indies estatais, ao seu adesismo lulista e seu aparelhamento de editais e verbas públicas para a cultura. Mas minha crítica é mais simples, tem a ver com estética e mercado. Qual a real inovação trazida por Criolo, Fróes, Pethit e congêneres? E até quando esses indies sambistas – e as bandas do tal circuito “fora do eixo” – vão ficar pendurados em Sescs, festivais gratuitos e dinheiro do governo? Se o lulismo desaparecer um dia, a música brasileira se extingue também?
Sei que não sou o cara ideal para dizer essas coisas. Porque tenho 48 anos e porque nunca morri de amores pela MPB. Este texto pode ser descartado como ressentimento de um coroa que não entende a harmonia brasileira do século 21, ou ranço de um incapaz de captar a beleza de nossa música. Mas acabei escrevendo esta coluna porque a leitura do NME me estimulou. Lembrou-me que, em algum lugar do mundo, existem músicos que buscam de verdade aumentar sua base de fãs porque precisam deles para sobreviver. E existe um jornalismo musical que vibra e incensa, mas que também incomoda. Vou assinar o NME.
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[Álvaro Pereira Júnior, da Redação da Folha]