Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

É tudo verdade

São tempos de moral indecente em séries de TV como House of Cards, e melações sexuais da sociedade de espetáculo que gera depressão. Aí a verdade na tela funciona como um choque para o público incapaz de distinguir ficção de realidade. O choque que salva o olhar está no festival “É Tudo Verdade”, organizado há 20 anos por Amir Labaki. E em O Sal da Terra, a fotografia de Sebastião Salgado tornada cinema com direção de seu filho, Juliano, e pelo alemão Wim Wenders que nos ensinou a enxergar Pina Bausch (Pina, 2011), o Buena Vista Social Club (1999); um Manoel de Oliveira diferente (Lisbon Story, 1994) e os últimos dias do cineasta Nicholas Ray (Lightening over Water, 1979)

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O festival abriu com o documentário Últimas Conversas, em que Eduardo Coutinho entrevista adolescentes imprecisos e, resmungando para a câmera, confessa que preferia falar com crianças: elas não precisam fingir, não estão moldadas, maquiladas. Só câmera, uma cadeira, sala vazia, e os adolescentes expondo suas angústias, revelando a surpresa de ver que sua mãe não é como a das novelas, ou a que ganhava dinheiro na noite até ser resgatada por outra mulher (a “padrasta”), e ainda o que o padrasto fazia com o corpo dela coisas que um pai não faria. Um adolescente queria surtar, outra, adoraria que o Brasil tivesse terremoto e maremoto, uma terceira tem sérias dúvidas entre ser esperta e se dar bem na vida ou ser boboca.

Coutinho não estava gostando das entrevistas, deixa escapar, não imaginava aonde podiam levar, e também não sabia se conseguiria montar o filme, mas tinha um contrato com o governo, tinha de cumprir. Ele foi assassinado em casa num domingo, em fevereiro do ano passado (2/2/2014), com uma faca de cozinha, por seu filho esquizofrênico que pretendia “salvar” o pai e hoje cumpre pena no manicômio judiciário. Mas o retrato de uma geração de adolescentes brasileiros da classe considerada “média baixa” – são alunos da rede pública de ensino do Rio de Janeiro – é de uma realidade tão forte que ninguém sai do cinema impune.

Uma delas conta que só descobriu o que é o mundo mau depois de ser obrigada a sair de um colégio particular de freiras e despencar, única negra, numa escola pública. Outra, que não tem nenhum problema em usar o privilégio de entrar na faculdade pela cota de negros, “porque sou negra” – e mostra a pele. Outra, que sente vergonha de usar a cota porque tem capacidade para entrar de igual para igual. “Não tem cota de branco, tem?, então não quero o racismo para negros.”

Coutinho não teme o silêncio. Mas o silêncio incomoda o entrevistado. “É esquisito.” Coutinho segura, quieto. O silêncio é raro no cinema, hoje feito de ruídos e movimentos bruscos, cortes súbitos, sem dar tempo para pensar. Montado por João Moreira Salles e Jordana Berg, o documentário deixa entrever a intuição da morte e como faz falta a falta de rumo num filme que acaba levando ao lugar certo.

O outro lado

O festival não tem só Coutinho, ex-jornalista que trabalhou nos anos 1970 como copidesque do “Caderno B” do Jornal do Brasil depois de ter Cabra Marcado para Morrer censurado no golpe de 1964, retomado décadas depois. Do jornal migrou para o Globo Repórter e de lá para os documentários. O festival tem o belo Retrato de Carmem D, psiquiatra e psicanalista gaúcha radicada no Rio com carreira sólida e livros publicados quando um de seus pacientes morreu na Clínica Margaridas, nos anos 1980. Carmem foi suspensa pelo Conselho Regional de Medicina do Rio e amargou oito anos de tribunais até ser considerada inocente… mas algo se perdeu nesse tempo.

O documentário foi dirigido por Isabel Joffily e produzido por seu pai, José Joffily, que também dirige o documentário Caminho de Volta, produzido pela filha. O retrato de Carmem Dametto capta e rotina da grande psiquiatra e os documentários de pai e filha se cruzam, conversam, discutem o tempo, suas marcas e efeito sobre as pessoas. Observam, às vezes em silêncio, as injustiças.

O festival ainda prestigia o diretor Orson Welles que lhe deu nome, É Tudo Verdade, documentário que Welles veio rodar no Brasil em 1942 mas nunca conseguiu terminar e acabou determinando sua ruína.

O Sal da Terra abriu outro festival, o Ecofalante, e se passa entre o diretor alemão, oculto, focando num quarto escuro as fotos em preto e branco, reproduzindo o momento em que a imagem foi capturada pelo olhar de Sebastião Salgado. Wim Wenders diz que foi quase como no documentário Quarto 666 (1982), quando encerrou sozinhos num quarto Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni, Steven Spielberg e Rainer Werner Fassbinder, entre outros, com um tema a ser discutido: o cinema. Quando não há interferência de palavras enfiadas, falação sobre ética emoldurando a tragédia humana, vasos de flores, música de Hollywood e decoradores contaminando o ambiente, só pessoas e a câmera, sai o que fica lá no fundo – a verdade. Cinema verdade.

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O Sal da Terra passa pelo formigueiro humano dos trabalhadores da Serra Pelada, o genocídio de Ruanda, a tragédia e a grandeza da Amazônia, o Círculo Ártico, a Papua-Nova Guiné, as cicatrizes do terror ou os povos perdidos em terras remotas, os últimos acampamentos dos ursos morsa, a Etiópia, o Sudão, Mali, Congo, Uganda, Burundi e Galápagos, os poços de óleo queimados no Kuwait, a terra seca, a dor de ver seu filho Rodrigo nascer com síndrome de Down, coptas e beduínos, os desterrados, o horror e o ódio. Sem estetizar a miséria como insinuou Susan Sontag uma vez, o documentário traz o outro lado do mundo, sem retoques.

Leitura particular

O sal da terra lava tudo quando Sebastião resolve replantar a fazenda moribunda de seus pais em Minas Gerais. Dois milhões de árvores criaram o Instituto Terra. A terra curou o desespero que o olhar de Sebastião captou pelo mundo.

O olhar poluído dos brasileiros tem a sorte de estar começando a se encaminhar para os documentários. Amir Labaki festeja o renascimento dos documentários a partir dos anos 1990. “Com as inovações digitais, a inflação das imagens alterou a sensibilidade do espectador, somos metralhados por informação o tempo todo”, diz Labaki. E convida: “Os discursos não ficcionais nos dão uma leitura particular do mundo.”

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Norma Couri é jornalista