Nessa época não é preciso acordar cedo para tarefas corriqueiras. A força muscular do trabalho é transposta para o desfile nas avenidas das cidades. O momento é de vestir roupas com paetês, lantejoulas, plumas. Tem de haver brilho, muito brilho, pois a regra está no olhar alheio. As gorduras em excesso foram despejadas nos lixões das academias, ou em sessões de lipoaspiração, dietas e simpatias. Tudo é válido para estar bonito. Quem sabe os espectadores do Big Brother Brasil votem em você para ficar na casa?
Valeu a pena economizar o ano inteiro, agora é aproveitar a festa. Se o dinheiro não sobrou, não tem problema, é só comer cachorro-quente em barraquinhas de calçada às cinco horas da madrugada. Se você deixou dívidas pendentes, não se preocupe. Esse assunto é melhor deixar para quarta-feira de cinzas, quando as cinzas terão de ser recolhidas. Agora é momento de extravasar. Abram alas que eu quero passar!
Os dias são ensolarados. A sede está para uma boa cerveja gelada, paixão nacional. É preciso expurgar a repressão, colocar a raiva contida para fora. O povo está assoberbado com notícias ruins, violência inconcebível, mortes desnecessárias. Não se deve deixar intimidar. Porém, hoje é Carnaval, tempo de usar a fantasia para ser quem nunca se foi, ter o samba no pé e risos incongruentes.
Quanto riso, quanta alegria
As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver ficar
Eu meto a mão no saca rolha
E bebo até me acabar.
São poucos dias. Ao término do Carnaval, o país volta a funcionar, ou não? Quem se importa? Quando será o próximo feriado mesmo? Essa é a pergunta do trabalhador brasileiro cujo foco está somente no entretenimento. Quem não se satisfaz com o trabalho, só pensa em ganhar dinheiro para gastar em diversão.
Quanto riso
Quanta alegria,
Mais de mil palhaços no salão.
Hoje eu não quero chorar
Trabalho e diversão nunca estiveram tão unidos, vide os lucros das empresas de entretenimento. Será que precisamos pensar nisso agora? Mas se não for agora, quando será?
Esse ano não vai ser igual àquele que passou.
Esse ano, meu bem, tá combinado:
Nós vamos pular separados!
Muitos envelhecem e morrem sem nunca pensar na própria trajetória. Quanto mais velhos, mais lembranças: lança-perfume para jogar no outro (não para cheirar), desfile de corsos, confetes e serpentinas de boa qualidade. ‘Na minha época, era Carnaval de família’, dizem os velhos na janela, babando, ao ver corpos quase nus. Eles até acreditam que pensam, mas isso é cansativo demais para uma ‘pessoa de idade’. Então viva a diversão!
Hoje, eu não quero sofrer.
Hoje, eu não quero chorar.
Deixei a tristeza lá fora.
Mandei a saudade esperar.
Hoje eu não quero chorar.
Quem quiser que sofra em meu lugar.
‘Estar informado’
A diversão é fundamental para um povo sofrido. Não se deve pensar demais para não gastar os pobres neurônios ainda ativos. Se eles enfraquecerem, podem deixar de existir. Construir um país cuja superficialidade é ganho de tempo é um absurdo grotesco.
Que tal abrir os jornais, após uma noite de muita bebida e loucura, e ver mulheres maravilhosas, triunfando na avenida no desfile de escolas de samba? A curiosidade do brasileiro é marcante. Muitos jornais e revistas aproveitam o filão, vendendo notícia (que nunca foi notícia). O brasileiro gosta de ‘estar informado’. Ele quer saber quem ficou com quem; o ator famoso que apareceu no camarote da grande cervejaria; o cantor internacional que esteve só de passagem. Precisamos saber se o estrangeiro gosta da gente; se a vilã da novela das oito é verdadeiramente má; se a fulana mostrou tudo esse ano, ou guardou para o marido. Como isso é reconfortante aos sentidos.
Tempo da dor e do prazer
Para que pensar, se o Carnaval é a festa da carne e não da mente? ‘Estou fora’, grita o executivo da empresa, ‘quarta-feira me torno responsável novamente.’ Muito bom poder ter a capacidade de ser outro alguém no Carnaval: Ser a mulher sendo o homem, ser o palhaço sendo o sério, ser a vedete sendo a dama da sociedade. O Carnaval é fundamental para um povo cuja identidade está arranhada pela corrupção e desajustes políticos.
Quero me afogar em serpentinas quando ouvir o primeiro clarim tocar.
Quero ver milhões de colombinas a cantar:
Lá, lá, lá, lá.
Quero me perder de mão em mão.
Quero ser ninguém na multidão.
Não devemos falar sobre assuntos enfadonhos nesta época, voltemos a pensar na fantasia que iremos usar. Para que serve o trabalho senão para comprar uma fantasia que custou meses de suor e sofrimento? Nossa cultura judaico-cristã prega que após atravessar o calvário atingiremos o paraíso. Portanto, o tempo da dor se coaduna com o tempo do prazer.
Na avenida estarão os anjos e a música de ritmo forte e repetitivo silenciará a razão. Carnaval é para estar fora, em carne viva. Deixemos a carne ser o que ela quiser ser. Agora é tempo de retirar a máscara cotidiana para viver o ritmo da selvageria dos instintos.
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal hoje é Carnaval.
Todavia, o que sobrará na quarta-feira de cinzas? Só tristeza.
O Carnaval passou
Levou a minha Rosa
Levou minha esperança
Levou o amor criança
Levou minha Maria
Levou minha alegria
Levou a fantasia
E só deixou uma lembrança.
Pior saber que todos os anos serão iguais. Até quando? Talvez, até que a morte nos separe do Carnaval.
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Gerontólogo, Petrópolis, RJ