Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

É Fantástico!

As cenas da confusão ocorrida no jogo Náutico x Botafogo em Pernambuco, exibidas pelo Fantástico deste domingo (1/6) foram a seqüência perfeita à reportagem sobre o atentado contra a equipe do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, e a entrevista com o delegado Alexandre Neto, que denunciou a corrupção na polícia carioca, também exibidas no mesmo programa. Mostraram o poder que um distintivo tem sobre as mentes das pessoas que o exibem no peito. É a polícia investida de super-poderes.

O que se viu em campo foi a ponta de um processo que faz com que policiais, desentendidos de suas prerrogativas, abusam do poder relativo que lhes é conferido.

Numa total inversão de valores, a policial que iniciou a confusão queria prender o jogador André Luiz em campo porque ele teria feito gestos obscenos para a torcida do Náutico. Motivo para punição disciplinar, está longe de ser caso de polícia. Ela agarrou furiosamente o jogador pelos braços e negou-se a soltá-lo mesmo quando ele se ofereceu para acompanhá-la espontaneamente.

Desequilíbrio psicológico

Diante das câmeras de diversas emissoras de televisão, o jogador foi agredido e imobilizado por dezenas de policiais como se fosse um bandido perigoso e fora de controle. A cena foi chocante. O jogador se debatendo para se livrar das garras dos policiais, que aumentaram a truculência e conseguiram subjugá-lo. Diante da batalha desleal, atletas e o presidente do Botafogo, Bebeto de Freitas, tentaram livrá-lo da descabida violência e também foram agredidos pela polícia. Tudo transmitido pela TV.

No mesmo Fantástico, uma reportagem sobre a violência no trânsito mostrou uma jovem abordada numa blitz, que, descontrolada, dizia, ‘Eu odeio policiais’. Não sei se ela estava alcoolizada porque a reportagem não mostrou detalhes e nem desejo entrar nesse mérito, mas apenas usá-la como exemplo de um sentimento cada vez mais presente no cidadão brasileiro. Temos medo da polícia ou, no mínimo, não confiamos nela.

Seja pelos corruptos, pelos bandidos em que se transformaram muitos membros da corporação, seja pelo despreparo para exercer um serviço público, seja pelo desequilíbrio psicológico resultado do poder que sobe a cabeça, emanado de um distintivo.

O cidadão, à margem

A sensação de que há brasileiros mais iguais que os outros permeia nossos piores pesadelos. A superioridade desses iguais é institucionalizada, organizada em níveis hierárquicos como uma grande estatal, o que garante a impunidade. Os policiais de Pernambuco são uma mostra dos pés e mãos. Mas a impunidade é corporativa e tem mais cabeças que uma hidra. Adentra gabinetes, como denunciou o delegado Alexandre Neto, envolve políticos, magistrados e até promotores (vide o caso Thales, que assassinou um jovem na Riviera de São Lourenço e pode ter garantidos seus vencimentos dependendo da decisão do Conselho Nacional do Ministério Público). Acoberta desmandos, incentiva comportamentos que distanciam cada vez mais os servidores dos cidadãos, dando-lhes a certeza de que tudo podem.

Enquanto o jogador André Luiz aceitou pagar 25 salários como pena alternativa imposta pela autoridade de plantão, registro a resistência do presidente do Botafogo, Bebeto de Freitas, que se negou a pagar qualquer quantia, preferindo ir a julgamento. Diante da situação de desmando e abuso institucionalizado em que vivemos, a atitude de Bebeto é um ato de desobediência civil que merece ser louvado.

O programa deste domingo nos deu um quadro da polícia brasileira, mostrando que no Rio a situação só se compara à máfia em seus áureos tempos, mas que os sintomas dessa praga se alastram.

Parece ficção. É como um surto que deixa os policiais fora da realidade, criando uma realidade paralela, com regras próprias. Só que, numa sociedade que aceita a inversão de valores, a realidade deles se instala e passa a ser a ordem e o status vigente enquanto o cidadão, este sim, vive à margem. É surreal. É fantástico!

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Jornalista, Brasília, DF