O debate entre Lula e adversários na Rede Globo agora é passado. Passado remoto, remotíssimo, como se houvesse ocorrido no fim do século que passou. Podemos agora falar desse debate com os olhos que miram o espelho retrovisor de um carro, como se tivéssemos sido transportados de um ano velho, ou dizendo melhor, como se houvéssemos sido arremessados de um século antes para o presente, depois de longas horas, desastres, no caminho que vencemos. Melhor, no caminho que temos vencido, até aqui. Como se pudéssemos olvidar que estas linhas se escrevem em um sábado, 28/10/2006.
O sentimento que agora no peito imagina o Brasil de 29/10/2006, de 30, de 31, como se o tempo se iniciasse agora, é de uma alegria que vem depois de uma tormenta. A poeira, os papéis que dançam, as pessoas que vão e que vêm em frente à casa de Denizar, esta mesma que um dia foi de seu João do Caldíssimo, na Rua Zeferino Agra, 178, no subúrbio de Água Fria, têm um quê de festa e de celebração depois da tempestade. Elas, nós, todos repetimos neste ir e vir um ciclo de vida comum. Caímos, levantamos, caímos, caímos, levantamos, e quando não nos levantamos de todo, não aceitamos as imposições da derrota.
Ah, parecemo-nos dizer, desgraças?, que venham, só temos uma opção, queremos a felicidade, queremos a felicidade, e se ela não vier, ah, damo-nos de ombros, estamos trabalhando para que um dia aconteça. E se a danação e a maldição e todas as desgraças em ão se unirem, ah, sorriremos, como a dizer, gente, foi bom, apesar de tudo, o caminhar até aqui.
De sorte que o ato de escrever as presentes linhas sofre um preciso conflito e a perseguição obsessiva de um pensamento. O conflito é ter o objetivo de comentar um debate que acabou há poucas horas, há menos de 10 horas, ao mesmo tempo em que temos a certeza de saber que depois dele, esse largo depois que alcança a leitura e os dias que virão, o debate já não mais interessa. É algo como falar do marido morto a uma viúva que está em festa de um novo casamento. A nada e a ninguém o defunto mais interessa. O debate foi, passou, e seu efeito sobre o que vemos agora é nenhum, nesta hora e nas futuras. Passamos por ele como passamos impacientes por uma procissão de automóveis, como passamos as horas antes de receber o esperado salário do fim do mês, ou como atravessamos as horas antes da correspondência com a notícia há muito esperada. Para que falar de debate agora, quando ele é a própria expressão das horas mortas?
Mensagem esclarecedora
O pensamento obsessivo a nos perseguir como um pentecostes, como Deus no caminho de Paulo a bradar contra Si uma blasfêmia, é uma interrogação que tem a forma de uma chama incessante: de que nos serve a liberdade se não transgredimos? Existe liberdade quando não vamos além do permitido, do recomendado, do que é sugerido pela tradição? Mas de que liberdade mesmo falamos? – essa é outra pergunta, da lembrança dos marxistas. Para encurtar o passo, digamos logo, por ora e por enquanto: a liberdade do que escrevemos, agora. Por isso…
Quando não se escreve o Apocalipse, ninguém escreve sobre o que virá. Somente escrevemos sobre o que veio, sobre o que lembramos. Daí que o tempo entre o que vemos e o que transmitimos não se dá na mesma ordem, a não ser na escrita automática dos delírios do inconsciente. Daí que ao acabar a frase ‘ninguém escreve sobre o que virá’, recebemos de imediato o golpe de um estudante de Letras, a nos perseguir com ‘o que me dizes sobre a ficção científica?’. Ora, lhe respondemos: uma boa forma de prever é refletir sobre o visto. A tendência de futuro está presente agora mesmo, a seu lado, a nosso lado, e muitas vezes os olhos míopes não vêem. A ordem do tempo, para quem escreve, sempre é invertida. Porque partimos sempre da experiência, e somos lidos como se partíssemos do fruto presente. Daí o conflito, daí a perseguição do pensamento que nos perfura com a sua subversão. Por isso, nada podemos dizer agora sobre a casa do senhor Denizar, na Rua Zeferino Agra, número 178, em frente ao Colégio Alfredo Freyre. Por isso, nada dizemos de imediato sobre Fernando Soares, que nos chega com mensagem esclarecedora.
Por isso, para chegar à mensagem de Fernando Soares e à casa do filho do seu João do Caldíssimo, passemos pelo último debate entre Lula e adversários, na Rede Globo de Televisão, naquele distante passado de 27/10/2006.
Preocupações recorrentes
Dizia a produção, na voz do apresentador com nome de cowboy William Bonner:
‘Estamos na Central Globo de Produções, no Rio de Janeiro, para o último debate entre os candidatos à Presidência da República. Neste estúdio, nós teremos 80 eleitores indecisos, selecionados por uma pesquisa do Ibope e vindos de todas as regiões brasileiras… Cada eleitor formulou cinco perguntas sobre temas gerais. Isso deu mais ou menos 400 perguntas. Destas a produção selecionou 12, e os eleitores que as formularam perguntarão diretamente aos candidatos… Isso vai funcionar assim, vou mostrar.’
E William Bonner andava, coisa jamais vista na televisão, pois sempre o julgamos um boneco sentado. E falava, com o script de memória:
‘O candidato que for sorteado vai se dirigir até este pequeno painel aqui. Este painel reproduz a imagem daquele telão bem maior. Aí o candidato virá até o painel, tocará um desses quadradinhos – são 12; ele vai tocar no que preferir – e, quando isso acontecer, ele estará, nesse momento, escolhendo um eleitor indeciso. Esse eleitor indeciso é quem vai fazer uma pergunta a ele. O eleitor será focalizado na platéia e vai dirigir uma pergunta ao candidato, com 20 segundos para fazer essa pergunta exatamente como foi formulada e referendada por um funcionário do Ibope. O eleitor não pode improvisar na hora de fazer a pergunta, não pode acrescentar nada ao que ele escreveu antes, senão a palavra dele vai ser cortada’.
Eram regras de império, de quem pode e manda. Como não estamos lá, e falamos do futuro, bem que podemos fazer livres considerações. Por que 80? Por que não 30? Por que não 135? Por que indecisos? Em nome até da coerência com a imparcialidade furiosa com que a imprensa atacou o presidente Lula, por que não os decididos abertamente contra? Ah, compreendemos, as aparências de justiça. O jogo é justo. Escrevemos jogo? Ato falho, porque tais regras mais nos lembram um game de meninos e adolescentes. Daquelas que levam ao inferno, sempre, enquanto antes nos matam junto com as horas.
Mas isto nos parece um jogo pelas formas exteriores, pelos botões, teclas, luzes que se acendem, regras inflexíveis, lucros e incertezas. No entanto, em um jogo a finalidade é honesta, mesmo nos mais desonestos, porque o objeto claro é arrancar dinheiro e derrota deste ou daquele. Pero não aqui, pois neste se trata e se declara de que se joga em nome da democracia, do debate…. Como nos disseram os colunistas do outro dia, esse jogo é do tipo town-hall meeting, evento tradicional na democracia dos EUA, onde os candidatos respondem aos eleitores presentes.
Bueno, se democracia nos EUA é uma piada, a cópia brasileira é uma piadorada, uma piada piorada. Mirem. Por que 5 perguntas sobre temas gerais? Isto quer dizer que o eleitor, aquele escolhido entre os 80, sabem Deus e Bush por quê, pôde perguntar o que desejou, da falta de democracia na imprensa livre ao caráter de classe da Justiça brasileira? Outra, por que essa exatidão matemática, que briga contra a lógica da vida mais simples, de 80 vezes 5 darem 400 perguntas? Se existe alguma ciência no método estatístico, 80 indivíduos típicos não fazem 5 perguntas distintas cada um. As preocupações se repetem, ainda que não com as mesmas palavras. Certamente alguém está mentindo entre números tão certos. E por que, por fim, destas 400, a ‘produção’ selecionou 12? Por que 12 é um divisor de 60, e 60, mirem, sempre é 60? Mistérios.
Perfil do ‘indeciso’
Começa o… debate. Do auditório erguem-se pessoas do povo que mal conseguem ler as perguntas que eles próprios fizeram. Coisas como…
‘Minha pergunta é sobre legislação trabalhista. Neste fim de ano, o meu vizinho vai receber o 13º salário por ter a carteira assinada. Eu saio junto com ele para trabalhar, volto quase no mesmo horário, mas não vou receber 13º salário, por não ter carteira assinada. O que o senhor propõe para mudar esse quadro?’
O que é isso, esse tropeço para ler o que eles próprios realizaram, seriam perguntas plantadas pela produção do debate, ou algo maior que o hiper-realismo, para maior tempero de verossimilhança? Notem que há uma tentativa de coloquialidade, como na frase ‘saio junto com ele’, que não é costume das pessoas do povo quando escrevem, ao mesmo tempo que aparecem palavras de uso raro no vocabulário da gente pobre do Brasil. Por exemplo, legislação, e quadro, em um sentido figurado. Mas, digamos, a exceção às vezes ocorre em indivíduos que saltam de um sorteio estatístico.
Então vem um próximo personagem, mais um do povo, porque estamos em uma assembléia popular, gênero town-hall meeting.
‘Boa noite, candidatos, a minha pergunta é sobre transporte. Eu preciso pegar pelo menos três ônibus por dia para poder estudar. Que medidas podem ser tomadas pelos senhores para tornar o transporte público mais acessível para toda a população?’
Muito bem, todos dizemos, isto é muito verossímil, melhor dizendo, isto é muito real. Fala um popular que sofre o infortúnio dos ônibus lotados e…. engano. É nesta altura que entra o escritor e jornalista Fernando Soares, em mensagem que circulou na internet:
‘Alan Brito foi um dos indecisos. Ele perguntou o que o futuro presidente faria com a melhoria dos transportes, e deu como exemplo o caso dele, que pegava todo dia 3 ônibus para chegar à faculdade. Só que a Globo não esperava que a farsa seria desmascarada tão rápido. Alan Brito mora na frente da faculdade. Não tem como ele pegar 3 ônibus. A pergunta foi montada para prejudicar o Lula. Não foi uma pergunta gerada por um indeciso, contrariando as regras que a Globo descreveu. A verdade está no próprio profile de Alan Brito. http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=15015107971567257159
Os amigos deles, todos indignados, dizendo que ele mora na frente da faculdade’.
O que se poderia dizer desse legítimo jovem do povo? Que recebeu a pergunta da produção sem atentar para o seu perfil no Orkut? Que mentiu e enganou a todos, do Ibope à Rede Globo de Televisão? Ou, quem sabe, porque em tempos de pensamento livre na web não se domina a opinião pública como antes? Mistérios.
Felicidade geral
O que não constitui bem um mistério, mas, quem sabe, chega a constituir um ministério, é a imagem dos candidatos na televisão, quando falavam. A do médico ilustrado tomava toda a tela, vá lá, até compreendemos, ele é um homem mais alto, tem menos pêlos no rosto e na cabeça, mas chega a ser um arte cinematográfica o modo como a câmera graduava a distância do adversário do presidente. Mas quando Lula usava o seu tempo, o zoom deixava de ser um recurso, e, até compreendemos, para que o espaço da sua fala se dividisse com a imagem do adversário, que o rondava. Ministério de manipulação. E o que dizer dos modos como o apresentador se dirigia ao presidente, na hora de ‘escolha’ de uma pessoa no povo no painel? Mirem, que é um espetáculo imperdível:
– Candidato Lula, toque ali no quadradinho do nosso painel…. Candidato Lula, falta só mais um quadradinho.
Percebem? O tom era de escárnio, de quem se dirige a um analfabeto, quase a ser levado pela mão. Enquanto para o outro…
– Agora é a vez do candidato Alckmin selecionar um eleitor indeciso…. Geraldo Alckmin é o candidato que vai escolher o primeiro eleitor a responder nesse bloco…
Por isso a maioria do povo, na hora de votar nos seus quadradinhos, escolheu um número 13, bem direitinho, com o algarismo 3 depois do algarismo 1, que, assim colados, nessa ordem, o 1 primeiro, o 3 depois, fizeram o número 13 . Para felicidade geral por mais 4 anos. Um brinde, portanto, a todos que hoje vêm à Rua Zeferino Agra, 178, subúrbio de Água Fria, no Recife. Todos tocamos no quadradinho do painel. Todos somos esse povo que sempre se levanta.
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Jornalista e escritor