A escolha do socialista Elio Di Rupio como primeiro-ministro da Bélgica aparentemente põe fim à crise política começada em abril de 2010, mas não elide o interesse sociopolítico-cultural do fenômeno que foi uma tecnodemocracia ocidental passar 535 dias sem governo formal. Di Rupio é francófono num país dividido em duas comunidades linguísticas: os valões, que falam francês (31%), e os flamengos (58%), de língua holandesa. É uma divisão nada simples, que tem causado grandes problemas ao longo da história belga e que agora acena com mais um, já que Di Rupio fala mal o holandês. Ele diz que compreende bem, que está aperfeiçoando a fala, mas isso não acalma o aguerrido nacionalismo linguístico dos flamengos.
Esse tipo de nacionalismo – na época dessa língua franca representada pela internet com a sua panóplia de recursos – é culturalmente interessante e certamente vai gerar situações propícias a boas análises. Entretanto, para vincular o universo da internet ao caso belga, o interesse maior está no fenômeno anarquista dos quase dois anos sem governo.
De fato, politicamente, a rede eletrônica parece reencontrar velhos postulados do Programa Anarquista, a exemplo do que propunha Enrico Malatesta no início do século passado:
“Organização da vida social por meio das associações livres e das federações de produtores e consumidores, criadas e modificadas segundo a vontade dos membros, guiadas pela ciência e pela experiência, liberta de toda obrigação que não derive das necessidades naturais, às quais todos se submetem de bom grado quando reconhecem seu caráter inelutável” (cf. Enrico Malatesta, Escritos revolucionários).
Na concepção de Malatesta, o anarquismo admite “a existência de uma coletividade organizada sem autoridade, isto é, sem coerção”. O caos aparente da rede eletrônica é, na verdade, presidido por uma organização dessa natureza, concretizando em escala planetária a reivindicação anarquista: “Precisamos estar relacionados com os camaradas das outras localidades, receber e dar notícias, mas não podemos todos nos corresponder com todos os camaradas”.
Ideologia caduca
Evidentemente, não é o medium internet em si mesmo que aponta para alternativas tidas como obsoletas, e sim a própria sociedade que, apesar da sofisticação do evidente controle geopolítico da rede, reforça as suas possibilidades de autonomia quando todo mundo está em contato imediato com os outro. Não é, portanto, o simples ser moderno do objeto técnico que lhe agrega valor social, mas a sua inserção numa trama de relações culturais e políticas capaz de dar-lhe um curso transformador.
É claro que muito importa a natureza especialíssima desse novo dispositivo tecnológico. Seu poder de mobilização tem possibilidades políticas insuspeitadas no âmbito da mídia tradicional. Se antes, para ser considerado necessário, um bem tinha de ser racional e público, hoje deve ser principalmente mundial. Enquanto os tradicionais atores presentes no multilateralismo (governantes, OCDE, Banco Mundial etc.) se definiam pelas relações internacionais entre Estados, hoje atores provenientes “de baixo” invadem a cena multilateral e tipificam relações intersociais, de modo proativo em fóruns como Porto Alegre, Seattle, Bombaim etc.
Na prática, as tecnologias se entrelaçam com movimentos sociais, e mesmo com influências externas, que se revelam amadurecidos num determinado momento histórico. Por isso é válido associar a imaterialidade do espaço virtual à noção de “território cultural”, até agora entendido como um espaço discursivo onde grupos ou minorias tradicionais lançam mão de recursos patrimoniais, inclusive linguísticos, para afirmação de uma diversidade cultural.
Não há dados imediatos para fazer uma vinculação direta entre o “anarquismo” da internet e a prática involuntariamente anárquica dos últimos 535 dias na Bélgica. O que aqui esboçamos é uma analogia entre uma ideologia politicamente perempta e a realidade cultural da tecnologia em voga. A possibilidade de existir sem governos, pelo menos esse tipo de governo gerado pelo enfraquecimento da democracia representativa ou por autocracias decadentes, pode não ser apenas a ressurreição do velho sonho oitocentista, mas talvez uma bandeira política do pós-modernismo que, como se sabe, foge de política como o diabo da cruz.
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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]