Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O reino está nu

Reproduzo a seguir versão do escritor e educador Rubem Alves para a história do dinamarquês Hans Christian Andersen sobre um rei vaidoso que gostava de ser elogiado por sua elegância.

“Havia um rei muito tolo que adorava roupas bonitas. Os tolos, geralmente, gostam de roupas bonitas. Pois esse rei enviava emissários por todo o país com a missão de comprar roupas diferentes. Era o melhor cliente da Daslu. Os seus guarda-roupas estavam entulhados com ternos, sapatos, gravatas de todas as cores e estilos. Eram tantas as suas roupas que ele estava muito triste porque seus emissários já não encontravam novidades.

Dois espertalhões ouviram falar do gosto do rei pelas roupas e viram nisso uma oportunidade de se enriquecerem às custas da vaidade da Majestade. A vaidade torna bobas as pessoas: elas passam a acreditar nos elogios dos bajuladores… Foi isso que aconteceu com um corvo vaidoso que estava pousado no galho de uma árvore com um queijo na boca: por acreditar nos elogios da raposa ficou sem queijo…

Pois os dois espertalhões-raposa foram até o palácio real e anunciaram-se na portaria, apresentando o seu cartão de visitas: ‘Doutor Severino e Doutor Valério, especialistas em tecidos mágicos.’

O tecido que só inteligentes poderiam ver

O rei já havia ouvido falar de tecidos de todos os tipos mas nunca ouvira falar de tecidos mágicos. Ficou curioso. Ordenou que os dois fossem trazidos à sua presença. Diante do rei fizeram uma profunda barretada, tirando seus chapéus.

‘Falem-me sobre o tecido mágico’, ordenou o rei.

Um dos espertalhões, o mais loquaz, se pôs a falar.

‘Majestade, diferente de todos os tecidos comuns, o tecido que nós tecemos é mágico porque somente as pessoas inteligentes podem vê-lo. Vestindo um terno feito com esse tecido Vossa Majestade será cercada apenas por pessoas inteligentes, pois somente elas o verão…’

O rei ficou encantado e imediatamente contratou os dois espertalhões, oferecendo-lhes um amplo aposento onde poderiam montar os seus teares e tecer o tecido que só os inteligentes poderiam ver.

Elogios entusiasmados

Passados alguns dias o rei mandou chamar o ministro da educação e ordenou-lhe que fosse examinar o tecido. O ministro dirigiu-se ao aposento onde os tecelões estavam trabalhando.

‘Veja, excelência, a beleza do tecido’, disseram eles com a mãos estendidas. O ministro da educação não viu coisa alguma e entrou em pânico. ‘Meu Deus, eu não vejo o tecido, logo sou burro…’ Resolveu, então, fazer de contas que era inteligente e começou a elogiar o tecido como sendo o mais belo que havia visto.

‘Majestade’, relatou o ministro da educação ao rei, ‘o tecido é incomparável, maravilhoso. De fato os tecelões são verdadeiras magos!’ O rei ficou muito feliz.

Passados mais dois dias ele convocou o ministro da guerra e ordenou-lhe que examinasse o tecido. Aconteceu a mesma coisa. Ele não viu coisa alguma. ‘Meu Deus’, ele disse, ‘não sou inteligente. O ministro da educação viu e eu não estou vendo…’ Resolveu adotar a mesma tática do ministro da educação e fez de contas que estava vendo. O rei ficou muito feliz com a seu relatório. E assim aconteceu com todos os outros ministros. Até que o rei resolveu pessoalmente ver o tecido maravilhoso. Mas, como os ministros, ele não viu coisa alguma porque nada havia para ser visto. Aí ele pensou: ‘Os ministros da educação, da guerra, das finanças, da cultura, das comunicações viram. São inteligentes. Mas eu não vejo nada! Sou burro. Não posso deixar que eles saibam da minha burrice porque pode ser que tal conhecimento venha a desestabilizar o meu governo…’ O rei, então, entregou-se a elogios entusiasmados ao tecido que não havia.

“O rei está pelado!”

O cerimonial do palácio determinou então que deveria haver uma grande festa para que todos vissem o rei em suas novas roupas. E todos ficaram sabendo que somente os inteligentes as veriam. A mídia, televisão e jornais, convidaram todos os cidadãos inteligentes a que comparecessem à solenidade.

No Dia da Pátria, a cidade engalanada, bandeiras por todos os lados, bandas de música, as ruas cheias, tocaram os clarins e ouviu-se uma voz pelos alto-falantes:

‘Cidadãos do nosso país! Dentro de poucos instantes a sua inteligência será colocada à prova. O rei vai desfilar usando a roupa que só os inteligentes podem ver.’

Canhões dispararam uma salva de seis tiros. Ruflaram os tambores. Abriram-se os portões do palácio e o rei marchou vestido com a sua roupa nova.

Foi aquele oh! de espanto. Todos ficaram maravilhados. Como era linda a roupa do rei! Todos eram inteligentes.

No alto de uma árvore estava encarapitado um menino a quem não haviam explicado as propriedades mágicas da roupa do rei. Ele olhou, não viu roupa nenhuma, viu o rei pelado exibindo sua enorme barriga, suas nádegas murchas e vergonhas dependuradas. Ficou horrorizado e não se conteve. Deu um grito que a multidão inteira ouviu:

‘O rei está pelado!’

Não existe tecido mágico

Foi aquele espanto. Um silêncio profundo. E uma gargalhada mais ruidosa que a salva de artilharia. Todos gritavam enquanto riam: ‘O rei está nu, o rei está nu…’

O rei tratou de tapar as vergonhas com as mãos e voltou correndo para dentro do palácio.

Quanto aos espertalhões, já estavam longe e deviam ter transferido os milhões que haviam ganho para um paraíso fiscal…”

E que relação há entre este escândalo e a empresa em que você trabalha?

Digamos que o rei seja a sua empresa e o menino em cima da árvore, o seu cliente.

No passado, o grande vilão da reputação de uma empresa, especialmente de uma empresa de serviços, chamava-se boca a boca. Temia-se que a má impressão de um cliente ou de um fornecedor influenciasse outro cliente ou fornecedor. Ou inúmeros deles. A amplitude de uma opinião negativa sobre um feito de sua organização era difícil de ser definida.

Obviamente que a mídia de massa nunca foi desprezada. Televisão, rádio, jornais e revistas sempre foram os grandes responsáveis pela robustez de muitas marcas no imaginário coletivo. Não há dúvida. A diferença é que há alguns anos, o já temido boca a boca transformou-se em uma revolução digital – passando a concorrer, inclusive, com os veículos tradicionais. Há um protagonismo generalizado. E não basta dizer que muitas vezes somos até mais influenciados pela percepção de um amigo do que pelas peças publicitárias ou pela mídia. Um estudo realizado em abril deste ano pela TNS, uma das maiores empresas de pesquisa de mercado do mundo, revelou que os brasileiros são os que mais têm contatos em redes sociais na América Latina, com média de 231 amigos virtuais. O seu cliente, quando fala, fala para centenas.

Há muitos casos reais de empresas e profissionais que subestimaram o poder de influência desta nova realidade e se deram mal. Não há mais mercado para companhias que não estabelecem com a sociedade uma relação de integridade.

O rei da história de Andersen foi traído por sua vaidade. Imaginou que conseguiria ser admirado por uma farsa. Investiu e reuniu em torno de si gente que também tentava sustentar uma mentira e ainda tirar vantagem dela. Bastou um cliente se manifestar para que o reino todo se voltasse contra Sua Majestade.

Não basta parecer honesto. Não existe tecido mágico. Estamos todos nus.

***

[Juliano Rigatti é jornalista]