Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Presidente faz cerco à imprensa independente

“Você trabalha no Clarín?”, pergunta mal-humorado o taxista ao repórter do jornal, depois que ele diz o endereço onde quer ir. Meu colega já vinha se irritando com esse tipo de patrulha. Chegou a dar nomes de ruas paralelas, preferindo caminhar até a redação só para não ouvir agressões de apoiadores do governo, que está em guerra com a imprensa independente. Nesse dia, respondeu: “Não, estou indo lá só para entregar um envelope.” Depois, pensou no absurdo que tinha sido levado a dizer.

Uma outra colega, que faz um curso de pós-graduação numa universidade local, havia se interessado pela aula de determinado professor. Um dia, foi pedir recomendações de leitura. Ele, simpático, a recebeu e perguntou a que se dedicava. Ela, orgulhosa, encheu a boca e disse: “Jornalista.” Quem já está há algum tempo na profissão acostumou-se a ouvir comentários positivos depois de uma apresentação assim. Em grande parte do mundo ocidental, considera-se o jornalismo uma atividade nobre e importante para a sociedade. Pois o professor dessa minha amiga parou de sorrir quando ouviu essa palavra. “Aqui não gostamos de jornalistas”, disse.

Comigo acontece também direto. Numa ocasião, numa barulhenta sala de espera de um dentista, enquanto preenchia minha ficha, a secretária perguntou minha profissão. Quando disse, fez-se silêncio, quebrado apenas pelo comentário desconcertante de uma senhora: “No seu país vocês são mentirosos também?” Em debate do programa 6,7,8, atração da TV estatal cuja finalidade é malhar a imprensa crítica ao kirchnerismo, o comentarista Orlando Barone soltou a seguinte pérola: “O jornalismo é inevitavelmente de direita porque a democracia é de direita. O jornalismo nasce para defender a democracia dentro dos cânones instituídos da propriedade privada.”

Na trincheira

O governo Cristina Kirchner, que começa um novo ciclo no próximo sábado, é louvável em alguns aspectos: tirou a Argentina da prostração econômica pós-2001, levou militares responsáveis pela repressão da ditadura (1976-1983) à prisão e aprovou o matrimônio gay. Porém, sua relação belicosa com a imprensa assusta. Para defender-se da imprensa, o governo montou um grande conglomerado. Seus veículos defendem as políticas do governo, mas principalmente atacam a cobertura de jornais tradicionais e, o que é mais grave, questionam a própria utilidade da mídia independente.

A proposta dos meios kirchneristas é implantar o que chamam de “jornalismo militante”, que prega a ideia de que o compromisso do jornalismo deve ser com “causas”, citando explicações da professora da faculdade de Comunicação de La Plata, Florencia Saintout. Intelectuais como ela se defendem dizendo que, como o jornalismo nunca é objetivo, é melhor escolher de uma vez um lado da trincheira. As “causas” do jornalismo militante, obviamente, não são quaisquer causas. Em essência, coincidem com as bandeiras do governo. O governo já anunciou que reforçará a execução da Lei de Meios, que tirará poderes de grupos como o Clarín e dará mais espaço a “meios militantes”.

Os próximos quatro anos serão, portanto, um desafio para o jornalismo independente, essencial para o funcionamento das instituições da Argentina. Cristina, que dá sinais de que prefere se alinhar ao Brasil de Dilma, mais do que à Venezuela de Chávez, deveria baixar o tom contra a imprensa independente. Nada a fará mais parecida com o líder venezuelano do que acuar o jornalismo e fazer com que jornalistas tenham vergonha de declarar o que fazem em público.

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[Sylvia Colombo é correspondente da Folha de S.Paulo em Buenos Aires]