Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A polêmica como ofício

Certa vez, ao examinar a obra de Euclides da Cunha, o jornalista Daniel Piza, morto no dia 30 dezembro, aos 41 anos, de um acidente vascular cerebral, em Gonçalves (MG), observou que uma das linhas de força do estilo do escritor era a colagem de gêneros. O autor de Os Sertões, dizia ele, era capaz de escrever como geógrafo, historiador, ensaísta ou romancista. Esse mesmo talento multidisciplinar tinha Daniel. Ele refez a histórica expedição amazônica de Euclides não por capricho, mas por identificação. A exemplo do escritor, parecia sempre inclinado a mudar de opinião diante dos fatos. Era um jornalista nato, um crítico interessado em tudo, que ouvia com genuína atenção os argumentos do interlocutor.

Quando, em outubro de 2011, foi lançado A Lebre com Olhos de Âmbar, de Edmund de Waal, conversamos muito sobre o livro. Piza, avesso a superlativos, perguntou – com um sorriso maroto e a intimidade de 20 anos de convívio – se eu não estava exagerando ao elogiar o livro de estreia do ceramista inglês, que entrevistei para o Caderno 2. Afinal, não seria o esforço memorialista de um membro da família Ephrussi apenas mais um ensaio sobre a arte dos netsuquês? Ele mesmo deu a resposta, classificando-o como o livro do ano em sua lista dos melhores de 2011.

Creio que o interesse de ambos pelo artesanato japonês o sensibilizou para a leitura de De Waal. Daniel acabou tocado pela simplicidade da narrativa familiar (ele, que adorava seus pais e os filhos) e pela riqueza de detalhes que só um homem erudito, um artista como o inglês – com livre trânsito pela arte, arquitetura e o design – pode oferecer. A identificação foi imediata, como era de se esperar. A erudição e os múltiplos interesses de Daniel fizeram por nossa memória cultural o mesmo que De Waal para a história de sua família.

Colunista cultural

A curiosidade movia o renascentista Daniel, capaz de comparar o toque de calcanhar do jogador Sócrates à pincelada de Volpi, um dos pintores que amava ao lado de Cy Twombly. A vocação para a polêmica era outro traço. Por meio dela conseguiu de Harold Bloom um pedido de desculpas pela ausência de Machado de Assis no seu cânone literário. O crítico norte-americano, em entrevista ao repórter (publicada no livro Perfis & Entrevistas), prometeu corrigir a omissão. Prolífico e controverso como Bloom, produziu 17 livros em 20 anos de carreira, entre biografias (do amigo Paulo Francis, seu grande incentivador), livros de reportagem (Amazônia de Euclides), ficção (As Senhoritas de Nova York, Noites Urbanas) e traduções de autores como Henry James (A Arte da Ficção).

Foi esse refinado crítico, ficcionista e biógrafo que subiu o Rio Purus, onde Euclides ajudou a demarcar os limites entre Brasil e Peru em 1905, assinando uma série de reportagens registrada num documentário da TV Estadão. Movido por razões sentimentais, escreveu a história da Academia Brasileira de Letras e a biografia de seu fundador, Machado de Assis, uma das primeiras paixões literárias. Daniel tinha 16 anos quando o leu pela primeira vez. Atropelado, aproveitou as sessões de fisioterapia para devorar Quincas Borba, concluindo que havia entre Machado e Edgar Allan Poe uma superposição de razão e loucura. Daniel era fascinado por A Narrativa de Arthur Gordon Pym. Ao analisar o livro de Poe, em Mistérios da Literatura, ele revela uma “história íntima” de sua estante, atribuindo ao escritor americano sua crença no materialismo científico – e não a Marx ou Nietzsche, que leu aos 14 anos.

Aos 21 anos, quando começou sua carreira no Estado de S.Paulo, como repórter do Caderno 2, já era um profissional formado, levando depois sua experiência para a Folha de S.Paulo (1992-1995) e Gazeta Mercantil (1995-2000). Há 11 anos voltou para o Grupo Estado como editor executivo e colunista cultural, apresentando ainda, na rádio Estadão ESPN, os programas Estadão no Ar e Direto da Redação. Nós, leitores e ouvintes, vamos sentir sua falta.

Preparava 2 novos livros

Piza tinha dois projetos com a editora Leya: o Atlas da Literatura Brasileira, que indicaria os principais movimentos e autores nacionais, e uma biografia de Iberê Camargo. O primeiro já estava bastante avançado na concepção e Daniel terminaria as pesquisas em 2012, conta o diretor Pascoal Soto. Depois disso, retomaria a biografia

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[Antonio Gonçalves Filho é da Redação do Estado de S.Paulo]