Daniel Piza foi atilado leitor. Na topografia natural de sua sala havia permanente cordilheira de livros, como Edmundo Leite flagrou para o site do Estadão no dia seguinte de sua inverossímil ausência. De tempos em tempos Daniel removia para a redação montanhas de livros, avidamente disputados. Aquela barafunda continha a ampla latitude de sua curiosidade intelectual, servida no que ela tinha de melhor e pior em sua coluna dominical.
As listas de melhores do ano são o melhor legado dessa fome de leitura. Nelas há mais livros do que se pode ler numa vida inteira que não se esgotasse em 41 anos. Na lista de 2009 ele disse: “Tratei de mais de 80 livros neste ano”. O verbo é “tratei”, melhor e mais apropriado do que “li”. É isso mesmo que se espera de uma antena, que perceba mais do que delimite (ele detestaria ser descrito como antena, embora Ezra Pound achasse sublime ser antena).
Sua antena era dotada de perspicácia com alto grau de acertos. Falava de preciosidades perdidas no mar de lançamentos. De Marca d’Água de Joseph Brodsky, em 2006. De O Último Leitor de Ricardo Piglia, no mesmo ano. Da notável antologia The Oxford Book of Modern Science, organizada por Richard Dawkins, de 2008. Do livro de memórias do arquiteto japonês Tadao Ando em 2010. De A Lebre com Olhos de Âmbar, de Edmund de Waal, em 2011. Livros na contramão do sucesso de vendas, da bitola do senso comum.
Um radar
As listas, impregnadas por benditas e malditas idiossincrasias, exibiam algumas características marcantes. Driblavam a propensão autárquica que às vezes sitia o Brasil fazendo pescarias fora. Em 2009 falou de The Age of Wonder, monumento de Richard Holmes sobre o flerte do romantismo anglo-saxão do século 18 com as descobertas científicas. No mesmo ano, mencionou Viaje de la Ficción que Vargas Llosa dedicou à formidável literatura do uruguaio Juan Carlos Onetti. Nem um, nem outro ainda foram publicados no Brasil.
O avesso dessa moeda era o deslumbramento. Por exemplo, com tudo que Philip Roth escreveu. O olhar cosmopolita estufava certa pretensão – “Muita gente descobriu só agora os contos de John Cheever e Rodolfo Walsh”, disse em 2010, ignorando descobertas bem anteriores. O mesmo olhar servia a julgamentos sumários. “Não há nada na ficção brasileira dos últimos 30 anos comparável a Roth, Sebald, Bolaño, McEwan ou mesmo Saer”, escreveu em 2008. Fazia questão de remar contra cânones às vezes apenas para exibir musculatura. Isso está nas estocadas a 2066, de Roberto Bolaño, ou na necessidade de dizer que Filho Eterno não era o melhor livro de Cristóvão Tezza, embora ainda seja.
É louvável que em todas as suas listas a ciência e a divulgação científica sejam equiparadas ao melhor da produção dita humanista. Em todas elas há sempre um Eric R.Kandel, falando de memória, ou um António Damásio, redesenhando faculdades cerebrais.
Há exageros e omissões nas listas, como há em todas as listas. Em 2009 ignorou Monodrama, do poeta Carlito Azevedo. Em 2011 arrolou entre os livros do ano a biografia de Jorge Luis Borges, escrita por Edwin Williamsom, que num julgamento para lá de condescendente não passa de um livro mediano, assolado por alto teor de chatura.
Não era o último leitor, mas fará falta. Era um radar com ambição de farol, um guia com presunção de oráculo. Precisaria dobrar séculos como uma tartaruga para ler tudo o que deu a impressão de ter lido de cabo a rabo na sua curta vida. Deixa bibliotecas por devorar. Quem as lerá por nós?
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[Flávio Pinheiro é diretor-geral do Instituto Moreira Salles]