A novidade excitava Pauline Kael. “A análise cinematográfica é estimulante porque não há fórmula a aplicar”, dizia. “Deve-se usar tudo o que se sabe.” Ao externar impressões com coragem e fúria, a crítica de cinema da revista The New Yorker entre 1968 e 1991 seduzia os leitores. “Como Bernard Shaw, ela escreveu resenhas que serão lidas pelo estilo, humor e energia, mesmo depois de os temas serem esquecidos”, definiu o também crítico Roger Ebert.
Dez anos após sua morte, o nome de Pauline volta a circular com o lançamento de dois livros: Pauline Kael, a Life in the Dark (Viking) e The Age of Movies, Selected Writings of Pauline Kael (The Library of America). O primeiro é uma biografia escrita por Brian Kellow, da revista Opera News. Kellow revela uma falta ética da ensaísta. Para escrever Raising Kane, seu principal ensaio, Pauline usurpou dados de um estudo de Howard Suber, da University of California, Los Angeles (Ucla). “O texto consolidou sua reputação entre os admiradores e convenceu os detratores de que era uma valentona irresponsável”, diz. No ensaio sobre Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Pauline defende a importância do roteirista Herman Mankiewicz. A tese reflete sua crença de que cinema não é tarefa de um homem só. “A história do cinema está sendo reescrita, ignorando os fatos para celebrar o diretor como única força criativa, escreveu, em resenha sobre Bonnie e Clyde, de Arthur Penn.
A análise do filme de Penn foi reproduzida em The Age of Movies por Sanford Schwartz, que foi amigo da crítica americana. Segundo Schwartz, Raising Kane não foi incluído por “questão de espaço”. Para apoiar a defesa dos roteiristas, Pauline ligou para Howard Suber. Ela soubera que o professor escrevia um longo ensaio sobre Cidadão Kane. Para a pesquisa, Suber falou com membros da equipe do filme e acessou 11 versões do roteiro. Pauline propôs que reunissem o material e escrevessem um artigo conjunto. Suber enviou sua apuração, contendo uma entrevista com Sara, mulher de Mankiewicz. Como depoimento, Pauline reforçou sua crença de que Charles Foster Kane era inspirado tanto no magnata William Randolph Hearst quanto na experiência pessoal de Mankiewicz.
O saco de pancadas
Suber insistiu que assinassem um contrato, mas ela foi evasiva. “Por que a maior crítica de cinema dos Estados Unidos precisaria ferrar um mero professor?”, Suber se perguntou, ao suspeitar que fora enganado. Ao receber um exemplar da New Yorker, descobriu que Pauline publicara Raising Kane. Ela clamou ter descoberto que nenhum personagem ouve Kane suspirar “Rosebud”, detalhe contado por Suber, que não recebeu crédito por sua pesquisa.
Apesar dessa atitude antiética, Pauline acreditava na meritocracia, diz Kellow. “Ela valorizava a ideia de causa e efeito: se colocasse toda a atenção em um objetivo, o resultado seria favorável. A tendência à ingenuidade é um traço essencial para entender seu temperamento.” Para Kellow, a contratação como consultora pela Paramount Pictures, em 1979, revela essa inocência. Pauline criticou ferozmente a indústria cinematográfica americana. Não tinha paciência com obras experimentais, mas rejeitava filmes comerciais sem criatividade. Segundo ela, em Hollywood “circulavam executivos rapinadores, de altos salários, cercados de vadias e puxa-sacos”. Mas aceitou o novo emprego.
“Quando foi para Hollywood, ela pensava que teria influência sobre a produção de filmes”, diz Kellow. “Foi um fracasso.” Em menos de cinco meses, voltou para Nova York. William Shawn, editor-chefe da New Yorker, relutou em aceitá-la de volta, mas foi convencido por um amigo. Segundo Kellow, Shawn é essencial para a carreira de Pauline. Ao ser convidada em 1968 para trabalhar na revista, aos 49 anos, ela pôde pela primeira vez viver da escrita. “Com sua personalidade discreta e puritana, Shawn foi o saco de pancadas de Pauline, que escrevia textos mais provocadores para irritá-lo”, diz o biógrafo. “Ele lhe ofereceu espaço ilimitado para tratar dos filmes em uma época muito estimulante para o cinema.”
“Viver com intensidade”
Kellow se refere aos anos 60 e 70, décadas de renovação da arte cinematográfica. Pauline deparou com o surgimento de Robert Altman, Steven Spielberg, Martin Scorsese, Brian de Palma e Francis Ford Coppola. Percebeu as obras desses diretores como um espelho da vida nos EUA. Não gostava de faroestes, filmes noir e ficção científica. Fez reparos incisivos a diretores como Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, Sidney Lumet e Woody Allen. Mas elegeu Marlon Brando, quando já era menosprezado pela crítica, como o herói americano. “Quando ele aparece na tela, há um reconhecimento pela audiência de uma qualidade especial: sabemos que ele é muito grande para seu papel”, nota.
Em resenha sobre O Último Tango em Paris (1972), comparou o lançamento do filme de Bernardo Bertolucci à estreia de “A Sagração da Primavera”, do compositor Igor Stravinsky, em 1913. “Chegou, finalmente, um filme revolucionário.” Segundo Sanford Schwartz, cujo trabalho canoniza Pauline como uma das escritoras essenciais dos EUA, há um romantismo camuflado no espírito crítico da ensaísta. “Ela julgou que os filmes poderiam alimentar nossa imaginação de forma imediata, libertadora e subversiva, efeito que a literatura, o teatro e outras artes não exerciam mais”, diz na introdução. “Na verdade, seu tema principal não era o cinema, mas viver com intensidade.”
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[Francisco Quinteiro Pires, do Valor Econômico]