Por treze anos, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, foi uma espécie de caixa preta e uma obsessão para jornalistas que cobrem televisão. Nome mais importante na história da Rede Globo e responsável por estabelecer um padrão de qualidade na TV brasileira que hoje é referência em todo o mundo, havia a curiosidade de que ele um dia fizesse revelações bombásticas sobre esse período, com histórias desconhecidas sobre seus protagonistas. Desde 1998, Boni manteve-se numa espécie de quarentena, sob contrato, mas não deixou de atender a imprensa. Quase sempre por e-mail, esquivava-se de fazer críticas, cutucar desafetos e falar das propostas que a concorrência tanto lhe fazia. Há três anos, disse a um jornalista que não era tempo ainda de pensar em biografia.
Logo mudou de ideia, pois passou bom tempo escrevendo e agora, aos 76 anos, lança a história de sua vida no robusto O Livro do Boni, com 352 páginas. Mas, como adianta na introdução, “não esperem deste livro nenhuma informação bombástica ou a revelação de segredos dos bastidores ou das empresas até hoje ocultos”. Portanto, a obra seria apenas “uma coletânea de episódios, alguns com informações importantes e outras, curiosas”, em mais de 60 anos de carreira. É bem mais que isso. Trata-se de um referência histórica indispensável, com relato de momentos pouco conhecidos ou desconhecidos da TV e da publicidade, como a hoje esquecida TV Paulista, de Victor Costa, onde Boni trabalhou quando ainda era menor de idade.
Nada foi fácil para ele. Boni chegou a trabalhar sem nada receber num momento de grande dificuldade financeira da família. Passou pela maioria dos canais de São Paulo e do Rio. Entrou para a Tupi paulista em 1951, quando o primeiro canal brasileiro tinha meses de vida. Viu nascer a Paulista, a Record, a Excelsior e a Bandeirantes. Deu o pulo do gato ao passar para o outro lado, o da publicidade, no momento em que os grandes anunciantes começavam a apostar na televisão.
A acusação de traição
Boni conta muitos casos com precisão de datas e riqueza de detalhes. Duas características predominam. Primeiro, a generosidade com todos os personagens que cita: faz questão de dar crédito a todos aqueles que o ajudaram ou com quem dividiu desafios. Depois, um esforço constante, no primeiro terço do livro, para mostrar que ele próprio era um visionário e um predestinado em todos os empregos pelos quais passou e, por isso, foi incompreendido muitas vezes. Nessa passagem longa e mais biográfica, além de erros de revisão – “cantar” vira “contar” –, alguns desfechos deixam dúvidas e perguntas.
Boni é um astuto contador de histórias. Tem humor, boas sacadas. Sabe escrever com fluência. Na linha do morde e assopra, predomina em sua narrativa o esforço de não ofender ou ferir egos – à exceção de Walter Clark, já falecido, que publicou um livro de memórias em 1991, em que o acusa de traição durante sua demissão da Globo, em 1977. Por dez anos, os dois pegaram uma emissora com apenas duas câmeras para fazer duas novelas diárias e estabeleceram sua hegemonia no mercado, que permanece até hoje, sem qualquer ameaça. Boni deixou o ex-parceiro para o final da obra e critica os excessos alcoólicos cometidos publicamente – até com drogas – que levaram à demissão dele. Garante que nada teve a ver com o fato. “O que eu poderia tentar era segurar a demissão do Walter, e eu tentei.”
Baixo conhecimento de TV
A atenção maior, claro, é para a história da Rede Globo, contada sob seu ponto de vista, mais de observador. Boni dedica à emissora dois terços do livro e toca em pontos espinhosos com alguma naturalidade e profundidade. Muito porque vários livros de personagens importantes com quem conviveu já foram publicados, ele parece à vontade para falar de antigos tabus. Conta sobre os embates da emissora contra a censura e diz que a expressão “padrão Globo de qualidade” foi cunhada pela imprensa, não dentro da emissora.
Sobre sua saída, dedica apenas um parágrafo, nas últimas páginas. Explica que se deu porque novas pessoas entraram “e o baixo grau de conhecimento delas em relação à televisão era assustador”. Contudo, “achava justo e legítimo que os proprietários implantassem uma nova maneira de operar a empresa”. Diplomático, esse Boni.
***
[Gonçalo Junior, para o Valor, de São Paulo]