Imagine assistir ao novo comercial em que Charlize Theron desfila sua sexualidade explosiva numa passarela, enquanto sussurra o nome do perfume que promove. Quando baixa os olhos, você dá de cara com a pequena manchete de jornal: “A estrela de cinema Charlize Theron patenteou uma tecnologia que está sendo aplicada nos drones usados pela Força Aérea americana no Paquistão”.
Um curto-circuito de credulidade semelhante se aplica à história verdadeira que o escritor Richard Rhodes acaba de contar em Hedy’s Folly: The Life and the Breakthrough Inventions of Hedy Lamarr, The Most Beautiful Woman in the World (A Loucura de Hedy: A Vida e as Invenções Inovadoras de Hedy Lamarr, A Mulher Mais Bonita do Mundo).
Sim, a estonteante Hedy Lamarr, nascida Hedwig Kiesler, em Viena, em 1915, estrela de Algéria, Fruto Proibido e Sansão e Dalila, foi uma das inventoras da tecnologia de rádio de amplo espectro que seria a precursora, entre outros, dos telefones celulares, do Wi-Fi e do GPS. “Qualquer garota pode ser glamourosa”, ela dizia. “Você só precisa ficar imóvel e parecer estúpida.”
Depois de seu premiado A Construção da Bomba Atômica (1986), Richard Rhodes continuou a se debruçar sobre a história nuclear, a corrida armamentista e a guerra fria. Tem um talento especial para tratar de assuntos áridos com fluência e tece com suspense a trama que envolve a fuga do marido comerciante de armas e da Viena simpatizante do nazismo.
Para quem espera conciliar a deusa dos pôsteres da MGM com uma figura intelectual, o autor deixa claro que Hedy Lamarr desafiava estereótipos.
Conversando com o Estado da sua casa no Norte da Califórnia, Rhodes nos adverte para não confundir a evidente inteligência de Lamarr com cultura. “Conheço muita gente inteligente que não lê nada”, diz. “Ela tinha cultura de colégio interno privilegiado na Suíça.”
O parceiro da Hedy Lamarr inventora era ninguém menos do que George Antheil, o pianista e compositor de vanguarda, um filho de emigrantes alemães criado em New Jersey que fora viver em Paris, onde era inquilino da lendária Sylvia Beach, fundadora da Shakespeare & Company, e frequentava luminares como Igor Stravinski, Ernest Hemingway e Ezra Pound.
A obra mais conhecida de Antheil, Ballet Mécanique, foi composta para um filme experimental dirigido por Dudley Murphy e o pintor Fernand Léger, com direção de fotografia de Man Ray, mas o filme acabou tendo uma trilha de jazz, num episódio nunca bem explicado. A estreia da peça em Paris em 1926, narra Rhodes, foi o ponto alto da carreira de Antheil.
Já em Hollywood, antes do começo da Segunda Guerra, Antheil começou por reinventar a si mesmo. Compôs para os estúdios, foi professor da Universidade de Stanford, cronista, jornalista da revista Esquire e seu primeiro esforço como inventor lhe daria experiência técnica para a parceria com a futura estrela de cinema. Em 1924, Antheil concebeu um sistema de anotação musical, uma espécie de piano-roll que corria em posição vertical e batizou o sistema de SEE-Note. Ele chegou a patentear a invenção na França, mas não conseguiu capital para levar o projeto adiante e a patente expirou quando Antheil vivia nos Estados Unidos.
A fuga de Hedy Lamarr da opressão do casamento e da Viena cada vez mais hostil a uma judia teve várias versões rocambolescas, espalhadas pela própria atriz. Fritz Mandl era um milionário negociante de armas e oportunista, que proibira a mulher de continuar a carreira de atriz e havia tentado comprar todas as cópias existentes do filme Ekstase. Filmado em Praga, Ekstase mostrou a primeira expressão de um atriz durante um orgasmo e revelou as formas nuas de Hedy, então com 18 anos.
A mansão de Mandl era frequentada por Benito Mussolini e militares alemães, mas não por Hitler. Joseph Goebbels havia denunciado Mandl num discurso como “o Judeu”. Antes de imigrar para a Argentina, onde se aliou a Juan Domingo Perón, Mandl notoriamente armou os dois lados da Guerra Civil Espanhola.
O moto de Hedy, ficar imóvel e parecer estúpida, veio a calhar, nos jantares em que ela absorvia valiosas informações sobre a estratégia nazista e especialmente sobre o letal aparato naval alemão. Ela fez amizade com o engenheiro Hellmuth Walter e prestou atenção quando ele explicou o novo torpedo operado por controle remoto.
A versão mais provável da emancipação da Senhora Mandl, escreve Rhodes, envolve um breve caso de amor com o romancista Erich Maria Remarque, autor de Nada de Novo no Front. E uma apressada viagem para Londres, com a bagagem de casacos de pele e joias. Não foi por acaso que, de Londres, a atriz embarcou no luxuoso transatlântico Normandie, em setembro de 1937. Entre os passageiros estava Louis B. Meyer, da MGM, cujo primeiro encontro com a atriz em Londres não tinha terminado bem. Meyer ofereceu a Hedy Kiesler um salário de US$125 por semana, recusado prontamente pela confiante desempregada e, por ter assistido Ekstase, o produtor ainda advertiu a austríaca: “Bunda de mulher é para o marido, não para o público de cinema”.
Quando o Normandie atracou em Nova York, a mulher de Meyer já havia rebatizado a atriz de Lamarr e o salário havia subido para US$500 por semana.
Rhodes lembra que, em Viena, a determinação da menina Hedwig era se tornar famosa: “Toda vez que leio biografias de pessoas que fizeram conquistas importantes noto que as preocupações se formam em torno de 10 ou 12 anos de idade”, diz. “Hedy era fascinada pelo carisma do pai que era seu mentor e sua audiência. Ele chegou a permitir que ela saísse da escola aos 16 anos para ser atriz.”
Avessa a noitadas, abstêmia e com muito tempo livre entre filmagens em Hollywood, Hedy instalou um escritório em casa, equipado com prancheta, iluminação profissional e ferramentas.
Uma festa na casa do figurinista Adrian reuniu Hedy Lamarr e George Antheil em 1940. Ela estava recém-divorciada do segundo marido e Antheil se arvorava a escrever sobre endocrinologia feminina. “Hedy Lamarr quer lhe consultar sobre suas glândulas”, disse o anfitrião. O compositor escreveu depois sobre o deslumbre que sentiu na presença da atriz. Mas não contou que as glândulas na preocupação de Lamarr eram seus seios pequenos. “Dá para eles ficarem muito maiores?”, ela disparou, prática como sempre. E escreveu seu telefone em batom no para-brisa do novo – e casado – amigo. Richard Rhodes conclui que um caso entre os dois, nas longas noites de trabalho como inventores, nunca aconteceu. No livro, Rhodes reproduz uma carta de Antheil a um amigo que trai sua misoginia: “Hedy é incrivelmente infantil em alguns aspectos: por exemplo, ela nunca aprendeu a escrever, embora fale alemão, francês e inglês quase perfeitamente. Quando ela escreve (já a surpreendi fazendo anotações durante nossas conversas) – escreve foneticamente – em todas as línguas. Ela é esta combinação incrível de ignorância infantil e estupidez – e precisas centelhas de gênio”.
Rhodes deixa claro que Lamarr escrevia corretamente em documentos conhecidos.
Durante meses, os dois novos parceiros trabalharam num sistema de guia de torpedos usando mudanças de frequência que permitiriam à Marinha americana evadir esforços de bloqueio inimigo. O código do sistema era perfurado num papel, como no rolo que Antheil inventara para o piano. Em agosto de 1942, a patente número 2.292.387 foi concedida em Washington para George Antheil e Hedwig Kiesler Markey. Mas a invenção do controle de rádio para o torpedo, concebida dois anos antes, havia se perdido na burocracia da capital e na preocupação com a entrada do Japão na guerra. A patente expirou em 1959, a tecnologia foi progressivamente aplicada mas, só em 1997, Hedy Lamarr, aos 82 anos, foi homenageada junto com Antheil, já morto, como pioneira pela Electronic Frontier Foundation.
Os dois ainda trabalharam em dois outros projetos militares, além do torpedo. Rhodes conta que documentos sobre um deles apontam para uma tecnologia de bombardeio antiaéreo usando detecção de calor, não dessemelhante da que mais tarde, desenvolvida por cientistas em Washington, salvou a vida de milhares de marinheiros americanos dos ataque de camicaze japoneses.
Hedy Lamarr se afastou do cinema antes do fim da década de 50, mas continuou pensando em inventar maneiras de, como diz Richard Rhodes, “organizar o caos do mundo”. Chegou a sugerir uma modificação no design do supersônico Concorde, inventou uma coleira de cachorro florescente e um aparelho para ajudar deficientes físicos a tomar banho. Seu último projeto era atravessar o milênio. Morreu dormindo no dia 19 de janeiro de 2000. Quem haveria de imaginar tal roteiro em Hollywood?
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[Lúcia Guimarães é jornalista e colunista do Estado de S.Paulo em Nova York]