Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lições e artes que podemos aprender com ele

Entramos em 2012 sem Daniel Piza. Perdemo-lo aos 41 anos de idade, a 30 de dezembro de 2011. Mas a amplitude da pauta jornalística nas homenagens prestadas à memória do jornalista escritor logo revelou ao Brasil que um AVC fulminante poderá dar fim ao corpo de um autor, mas não apaga nem as ideias nem os méritos da sua obra. Ao contrário: pode motivar o interesse das pessoas pela descoberta da herança cultural deixada. Principalmente quando a notícia do falecimento traz consigo o impacto emocional da surpresa.

Assim aconteceu com Daniel Piza.

A qualidade da resposta jornalística à sua morte criou nos segmentos informados da população brasileira (cada vez mais amplos) um lúcido entendimento dos significados da perda. Para isso contribuíram as muitas manifestações de consternação pela morte do jornalista escritor, com as quais, no conjunto, se construiu um humanizado perfil biográfico. Em outra vertente, a pauta jornalística abriu-se à análise conceitual da obra de Daniel Piza, e com isso disseminou um bem estruturado conhecimento sobre a importância cultural, intelectual e política do seu legado, no conjunto e nas particularidades do muito que pensou e escreveu – sempre com independência, agudeza crítica, mordacidade provocante e vivacidade estilística.

Ilustro o que aí está escrito com um pequeno recorte (extraído de texto publicado em março de 2008) desse jornalismo de argumentação crítica, que Daniel manejava com precisão de sagaz acutilador:

“O que mais se vê na literatura brasileira é o escritor que tenta ser outro escritor. Basta ler algumas páginas e você logo identifica: eis um sub-Rosa, eis uma sub-Clarice, eis um sub-Fonseca. Sofrer influência é uma coisa, não ter voz própria é outra. O bom autor tem muitos pais e não é submisso a nenhum.”

Esse exímio e desassombrado argumentador permanecerá entre nós, na perenidade de sua obra. De Daniel Piza há muito a ler e a reler. Além do vastíssimo acervo de peças jornalísticas de valia literária (produzidas em ritmo contínuo, ao longo de duas décadas), Daniel Piza deixa-nos:

>> Três livros de ficção;

>> Cinco coletâneas de textos próprios, organizadas por gêneros e temáticas;

>> Cinco textos acadêmicos (reportagens e ensaios) de estudos literários;

>> Três perfis biográficos (Ayrton Senna, Paulo Francis e Machado de Assis);

>> Quatro livros patrocinados;

>> Dois textos de catálogos;

>> 19 participações em livros;

>> Um audiolivro;

>> Quatro roteiros;

>> Seis obras, em que foi organizador, trabalhando com conteúdos de autores diferentes (Paulo Francis, Bernard Shaw, Lima Barreto, Euclides da Cunha, KennethTynan e George Orwell);

>> Tradução de seis grandes obras e participação em mais duas traduções;

>> 16 prefácios e/ou orelhas de livros importantes.

Podemos, portanto, continuar a aprender com Daniel Piza. Por exemplo, com a qualidade e a clareza do seu texto argumentativo – e que bom seria se os cursos de jornalismo acordassem para a urgente necessidade de ensinar técnicas e teorias da argumentação.

Como apreciador e estudioso do bom texto, aponto, de modo especial, três fortes marcas naquilo que poderíamos chamar de pedagogia estilística e metodológica de Daniel Piza.

1) A criatividade como produto da inteligência

Para o epistemólogo e pensador Jean Piaget, a criatividade pertence ao universo da inteligência. Por decorrência, ensinou ele, para que a criatividade surja e produza, é essencial nutrir a inteligência. E a melhor forma de nutrir a inteligência é a leitura de coisas de diferentes áreas, para a formação de uma visão interdisciplinar.

A experiência jornalística e literária de Daniel Piza dá razão a Piaget. A criatividade da sua escrita brotava de uma inteligência fortemente nutrida pela leitura. Daniel foi um incansável e insaciável explorador de livros, que sempre o cercavam, em casa como nas redações.

Explica-se, assim, a facilidade, a segurança e a lucidez com que o jornalista escritor transitava pelas diferentes temáticas de que se ocupou como autor.

2) Na argumentação, o uso performativo da linguagem

Embora no exercício e no entendimento do jornalismo fosse também um refinado garimpeiro de fatos, era na seara das idéias que Daniel Piza se movimentava e agia – quer tratasse de coisas da cultura ou do esporte, da política ou dos costumes, da ética ou da estética nas relações sociais.

A grande arte a que se entregou, como jornalista da argumentação, foi a do uso intensamente performativo da linguagem. Mover as mentes era o seu objetivo prioritário, tendo em vista, quase sempre, a disseminação do conhecimento.

Para mover mentes na ação discursiva da argumentação, nele prioritária, Daniel Piza arquitetava estratégias e táticas de convencimento pelas vias da elucidação, da divergência e do debate, a partir de pontos de vista claramente assumidos, sustentados e defendidos – com os quais, naturalmente, nem todos concordavam.

Aliás, como argumentador, Daniel Piza fazia questão de ter adversários. Precisava deles. E os provocava, quando ostensivamente se opunha a apologias apaixonadas, quaisquer que fossem, quer viessem da direita, da esquerda ou do centro.

Aí estavam, na apologética apaixonada, os adversários preferenciais.

Também nesse aspecto a criatividade do jornalista escritor Daniel Piza combinava com as teorias de Jean Piaget, estruturalista que sempre tinha na cabeça os positivistas, como adversários. “Posso não ser importante para o meu adversário”, escreveu Piaget, “mas ele tem um papel importante para mim”.

3) O uso dos gêneros como ferramentas eficazes na criatividade do “dizer”

Crônicas, Artigos, Entrevistas, Reportagens, Críticas, Resenhas, Ensaios, Poemas, Narrativas ficcionais, Aforismos…

Daniel Piza passeava fácil e prazerosamente por qualquer dessas formas de escritura, e de outras, que inventava em fusões ou misturas transgressoras.

Com ou sem o aporte de estudos especializados, Daniel Piza entendia e usava os gêneros como formas eficazes de dizer, tendo em vista o sucesso das ações discursivas que pretendia realizar. Buscava, portanto, o sucesso interlocutório. E porque entendidos e usados por Daniel Piza como formas do discurso, e não como “o discurso”, os gêneros cumpriam papeis de enorme relevância, como ferramentas de criatividade no jornalismo e na literatura do autor.

Alguns leitores poderão pensar que falta a este texto uma boa fotografia de Daniel Piza. Têm razão. E a fotografia aqui vai, em forma de palavras – fragmento de retrato, talvez, mas fiel:

“No Brasil acham que ser liberal é ser contra a existência de estatais, mas não é nada disso: o conceito embutido na expressão é o de que você deve procurar individualmente sua formação intelectual e não esperar que professores ou padres lhe digam o que pensar. Ao mesmo tempo, educar-se é entrar em contato com a tradição. Você só vai ter ideias independentes se antes conhecer as boas ideias alheias.” (Daniel Piza)

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[Manuel Carlos Chaparro é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo]