Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lições viárias

Quem sai de São Paulo pela Marginal do Tietê dificilmente se aperceberá de que a toponímia proporciona ao transeunte uma irônica lição de história. Uma das pontes mais exuberantes do percurso homenageia um dos mais importantes dirigentes da imprensa nacional, Júlio Mesquita Neto, de O Estado de S. Paulo. Construída sobre pilar, a ponte tem 300 metros de extensão e oito pistas nas duas direções.

Logo em seguida, a ponte mais nova daquele sistema viário, inaugurada há apenas seis meses, recebeu o nome do governador Orestes Quércia. Tem apenas quatro pistas numa única direção, mas é estaiada (o que lhe confere maior beleza, se podemos considerar a beleza como possível em uma paisagem tão árida pela imensidão de pedra) e nada menos do que 1.600 metros de comprimento.

Júlio Neto e Quércia foram inimigos em vida. O Estadão contribuiu para a fama do governador paulista como ladrão, adjetivo duro tantas vezes repetido no jornal. Mas quando, em 1993, invertendo os papeis, o jornalista processou o líder do PMDB no Estado por difamação, não conseguiu condená-lo através da justiça. Quércia declarou ao concorrente do Estado, a Folha de S. Paulo, que a aversão dos Mesquita advinha da circunstância de ter acusado Júlio Neto de especulação na bolsa de valores.

Júlio Neto, o último dos Mesquita a dirigir de fato o tradicional diário, morreu três anos depois, aos 74 anos. Quércia se foi aos 72, em 2010.

Guru e pupilo

A homenagem ao diretor-responsável foi prestada (quem diria) por Paulo Maluf, quando prefeito de São Paulo, em 1996. Foi o derradeiro cargo executivo do conturbado político, também alvo permanente dos ataques do jornal (pelos mesmos motivos que estigmatizaram Quércia). Com sua reforma editorial, a partir da década de 50, o Estadão transferiu do Rio de Janeiro para São Paulo o eixo principal da imprensa nacional, que se concentrava no antigo Distrito Federal.

Já a homenagem a Quércia é de responsabilidade do governador Geraldo Alkmin, do PSDB, realizada seis meses depois da morte do homenageado, que vivia, no doce exílio da riqueza, as dores de um câncer na próstata. Quércia venceu uma eleição pela última vez em 1986, quando derrotou Maluf na disputa pelo governo. Ainda elegeu seu sucessor, numa demonstração de poder.

A partir de 1990 acumulou quatro derrotas seguidas, inclusive para a presidência da república, que tanto cobiçou (como seu antepassado no cargo e na fama, Ademar de Barros, que criou um partido todo seu, o PSP). Ainda assim, era Quércia quem mandava no PMDB paulista (com a ajuda de seus fieis “luas pretas”).

Tanto que indicou Michel Temer companheiro da presidente Dilma Rousseff. Talvez mais pelo seu poderio econômico. Chegou a realizar a façanha de ser dono de dois jornais em Campinas, o segundo mercado econômico do Estado. Provei dessa afluência numa das 11 cafeterias Otávio’s, que ele abriu na capital, em homenagem ao pai. Nesse quesito, nunca decaiu. Era das melhores cafeterias do mundo, posso atestar (com a suspeita de ser um pouco também lavanderia)

Ao dedicar-lhe uma ponte de primeira qualidade, Alkmin talvez tenha procurado realçar a força do político caipiria, que ele faz questão de ser – e Quércia também fazia. Se Quércia já se foi, ainda assim pode ser uma ponte simbólica para as aspirações do político de Pindamonhangaba que mais deu certo. Lições e ironias da história e da topografia.

Ao passar sob a ponte, veio-me logo à lembrança o nome de Jader Barbalho, cujo poder se expandiu da base estadual para o âmbito nacional à sombra de Orestes Quércia. O governador paulista lhe deu o aval como uma das fontes de financiamento da campanha para o governo do Pará, em 1982. Sobretudo para o jornal que Jader lançaria naquele ano para não ficar inteiramente à mercê de O Liberal. A primeira editoria do Diário do Pará, por isso, foi a Bauru, que era de Quércia. O guru caiu antes de morrer. Já o pupilo acaba de ressuscitar mais uma vez. A derradeira?

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]